Alexandre Belmonte


2. Infância entre colinas, bichos e dialetos
Nasci numa maternidade pública no belíssimo bairro imperial de São Cristóvão, outrora o coração da cidade do Rio de Janeiro, em 17 de setembro de 1975, segundo filho de uma família que se formou fora de suas terras de origem. Qualquer um diria que eram “dois italianos”, mas, entre a família calabresa de meu pai, recém-chegada ao Brasil no fim dos anos 1950, e a família de minha mãe, agricultores de café no Espírito Santo, de origem trentina e mantovana, que migraram para o Rio no início dos anos 1970, prevaleceu o lado calabrês. E prevaleceu no grito: nas tradições, na comida, na língua. Era uma família decididamente dialetal. Só quando comecei a estudar italiano, quando tinha por volta de 12 anos, é que entendi que a língua que falávamos em casa não era exatamente o italiano, mas sim o calabrês, mais precisamente o belvederese, uma variante única do cosentino, falada entre Praia a Mare e Paola, provavelmente o dialeto mais incompreensível da região, conhecida como Riviera dei Cedri.
Durante muito tempo, ouvi dizer que os cedros dali — os famosos cedri calabresi, cidra em português, espécie Citrus medica — teriam começado a ser plantados por judeus que chegaram à região muitos séculos antes de Cristo, ainda na primeira diáspora. Mas essa história, embora repetida com certo entusiasmo local, não se sustenta. A própria festividade de Sucot, na qual a cidra é usada como uma das quatro espécies sagradas, só se consolidou como ritual estruturado bem depois, quando o Templo de Jerusalém já estava em funcionamento, e com maior força após o exílio babilônico. A associação entre os judeus da Antiguidade e o cultivo de cidra na Calábria é, no máximo, uma reconstrução simbólica criada séculos mais tarde, para inventar uma historicidade para o judaísmo rabínico. A valorização das cidras da Calábria por comunidades judaicas só aparece de forma clara a partir da Idade Média, especialmente em fontes rabínicas como responsas e tratados de halachá.
O que é fato — e eu mesmo vi — é que, todos os anos, entre setembro e outubro, rabinos ortodoxos de diversas partes do Mediterrâneo, de Israel, da Europa e até dos Estados Unidos, chegam à região em busca do fruto perfeito para celebrar Sucot. Já presenciei grupos inteiros inspecionando plantações com atenção minuciosa, usando lupas em mercados, examinando cada fruto com muita atenção. Vi também judeus ashkenazitas com seus chapéus shtreimel, comprando etrogs enormes e simétricos por valores quase inacreditáveis. A paisagem calabresa se transforma nesses dias, com o ir e vir de figuras excêntricas que, entre murmúrios em hebraico e ídiche, vão caminhando entre os pomares e mercados.
E foi entre os calabreses recém-chegados ao Rio de Janeiro que eu nasci, e com eles vivemos num mesmo prédio durante quase 15 anos anos. Eram pessoas ligadas à terra: pastores de cabras e ovelhas, como meu pai, terratenentes e agricultores que se dedicaram a muitas atividades, as principais eram o cultivo de oliveiras, a cerâmica, a música e o comércio. Meu tio Antonio herdou a tradição musical. Nunca o vi tocar, mas na família se fala muito de como tocava fisarmônica. Minha avó Rosaria tocava o tamburello, espécie de pandeiro usado nas tarantelas. Meu pai sempre gostou de cantar, e sempre fomos uma família muito musical. Eu herdei esse gosto desde muito criança. Eram comuns as festanças em casa, com muita comida, bebida, canto e dança, principalmente depois que nos mudamos para uma casa maior.
Na minha infância, vivíamos com meus pais e irmãos no primeiro andar do edifício familiar, no que um dia fora o porão do casarão de um japonês (de quem meu avô Salvatore havia comprado a casa). No segundo andar, em uma das casas, vivia minha avó, a matriarca nonna Rosaria, com seus muitos cães e gatos, e muitos vasos de manjericão, além do tio Marco ("João"); em outra parte da casa, o tio imediatamente mais velho que meu pai vivia com sua família. Ainda outro tio, Luigi, vivia com sua família, seus seis filhos e sua mulher, na zona Oeste da cidade.
Muitos anos depois, o prédio cresceu para cima, naquele terreno que parecia não ter fim, cujo muro colinda até hoje com o Parque Machado de Assis, na parte mais alta do morro, de onde se tem uma vista de 360 graus daquela parte da cidade: da Ponte Rio-Niterói ao Corcovado, passando pela Tijuca, o centro da cidade e os morros de Santa Teresa, São Carlos e Estácio de Sá. Tudo estava ali à nossa vista: Central do Brasil, Pão de Açúcar, porto, Morro da Providência, Sambódromo, Catedral Metropolitana, Prefeitura — o Morro do Pinto parecia um panóptico de onde víamos a cidade amanhecer, e onde ficávamos até mais tarde alimentando fogueiras nas noites de São João, ou nas visitas dos dias 24 e 25 de dezembro. Os italianos sempre se visitavam nessa ocasião, e intercambiavam pratos típicos de outra paisagem, feitos com nozes, figos e vinho, mel, creme de ovos e farinha finíssima. Cannaricoli, grispelle, embiolati e pudins eram passados entre vizinhas que falavam em dialeto belvederese entre si. Minha avó era a única que não falava português, e mesmo com os brasileiros continuava a falar em dialeto. Todos a entendiam, ou pelo menos assim parecia a ela. Nunca teve dificuldade em se fazer entender naquela colina que simulava sua colina natal à beira do mar Tirreno.




3. Formação e experiências escolares
Estudei no Colégio Pedro II, onde ingressei aos dez anos para o ensino ginasial. Ali aprendíamos não apenas as matérias do currículo nacional básico, mas também latim, grego, francês, espanhol, alemão, xadrez, datilografia e teatro. Havia uma pista olímpica com área para salto à distância, ginástica, piscina semiolímpica e várias quadras poliesportivas, além de um ginásio coberto. Tínhamos aulas de educação artística e música, e nossa agenda, já aos quinze anos, incluía aulas separadas de Matemática I e II, Química Orgânica e Inorgânica, Português e Literaturas. Entre o horto florestal, as duas bibliotecas e os laboratórios de física, química e biologia, fomos crianças e adolescentes felizes que, em bandos enormes, cruzavam a cidade de ônibus: praias da Zona Sul, Centro, Tijuca e muitos bairros do subúrbio do Rio, em aniversários, festas juninas e passeios de fim de semana.
Foi com meus amigos do Pedro II que comecei a viajar pelo Estado: para as serras, depois a Região dos Lagos, Angra… Em minhas viagens vivenciando e compartilhando silenciosas rebeldias, detive-me mais em alguns lugares do que em outros. Desde pequeno, viajava com meus pais e irmãos - de caminhão, de kombi, de sedã. Papai sempre estava trabalhando e nos levava junto. Talvez por compensação por estar quase sempre ocupado, fazia todas as nossas vontades - para desespero da mamãe. Muitas vezes voltamos para o Rio com coelhos, frangos e codornas. Todos, evidentemente, vivos. Minha mãe reclamava, dizendo que "bicho dá trabalho", mas acabava cedendo.
Quando eu tinha treze anos, nos mudamos para a casa onde meus pais ainda vivem, na mesma rua do Pinto, bem entre a zona portuária e o centro da cidade. Numa pequena chácara, a nonna criava suas galinhas, e até mesmo um porco nós tivemos. Havia um pouco de tudo ali: mangueiras, abacateiros, jaqueiras, goiabeiras. Meus pais plantavam batatas, às vezes mandioca; sempre havia muitos pés de manjericão, salsa, e até um pé de café e um pequeno lago onde muitas vezes íamos buscar o agrião para a salada do almoço.
Muitas senhoras italianas, inclusive minha avó, conversavam em dialeto calabrês, enquanto dona Carola secava pimentões ao sol, ou minha avó levava seus cachorros, atados a uma mesma corda, até o mercado ou a feira da rua Santo Cristo. Santa, Eva, Antonietta, Maria, Carolina, Rosaria - mulheres vindas da mesma região que, não por acaso, encontravam-se no Rio de Janeiro, naquela colina com vistas para o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, o centro da cidade e a Central do Brasil. Eram uma rede de pessoas aparentadas: oito ou dez famílias, mais algumas espalhadas pela cidade. Não frequentávamos a igreja - ou, se o fazíamos, certamente não era pela crença religiosa de nossos pais, embora quase todos tenhamos tido aulas de catecismo e alguns fizeram primeira comunhão. Os primeiros sinais que percebi de que minha família tinha origens judaicas vieram das bestemmie do papai, quando estava incazzato. Mas isso é assunto para outro momento.
Muito cedo, eu e meu primo Dodô íamos ao Centro da cidade. Éramos crianças ágeis e atentas. Pegávamos o Cabritinho até a Central, às vezes em bando, e almoçávamos juntos. Era uma farra. Uma patota de crianças.


4. Viagens com o pai e memória calabresa
Toda quinta-feira, papai trabalhava na Serra dos Órgãos, entregando mercadorias em diversos pontos, de Petrópolis aos distritos mais distantes de Teresópolis, passando por Nova Friburgo. Descendo por Cachoeiras de Macacu, sempre parávamos para tomar banho em alguma cachoeira. Eu o acompanhava sempre. Acordávamos às quatro da manhã, carregávamos o caminhão e subíamos a serra. Lemos muitos livros esperando o horário de descarregar; sempre almoçávamos em algum lugar diferente, e meu pai contava sempre muitas histórias da Calábria. Em outras ocasiões, viajávamos para a Região dos Lagos, para Minas Gerais, ou em longas travessias familiares pelo Espírito Santo.
Mesmo diante de paisagens naturais tão tropicais, sempre havia algo que lhe lembrava sua terra natal. Ele passava muito tempo descrevendo em detalhes os caminhos por onde pastoreava ovelhas e carneiros, cabras e cabritos. Sendeiros de parreiras, sinais da devastação deixada pela guerra, o mar bem abaixo, acessível. Muitas vezes minha avó descia para buscar água do mar, e nela cozinhava urtigas. Era o que havia. A nonna teve cinco filhos durante a guerra; meu pai foi o terceiro. Muitas dessas histórias me foram recontadas anos depois, já na Itália, pela zia Angelina ou o zio Daniele.


5. A primeira travessia: retorno à Calábria
Quando me formei, em 1997, recebi uma boa bolsa de estudos do governo italiano, para uma temporada de estudos no extremo-sul da Península, na confluência dos mares Tirreno e Jônico, bem perto da montanha onde meu pai nascera em 1941. A experiência de estar ali pela primeira vez confundia-se com as memórias que havia construído ao longo da vida, compostas pelas histórias que meu pai, meus tios e minha avó compartilhavam sobre a vida deles na Calábria. Aos poucos, tudo aquilo fazia tanto sentido para mim, que não me senti estrangeiro em nenhum lugar. Tios, tias, primos e primas me levavam a todos os cantos: discotecas, praias, colheita de porcini nas montanhas dos Apeninos, passeios de moto. Acompanhei meus primos para colocar as redes ao longo dos campos de oliveiras. Em outubro, com os ventos do outono, começavam a cair.
Eu escolhi percorrer os vilarejos em uma antiga Vespa viola. Minhas tias me disputavam, sempre se superando em pratos deliciosos, que me ligavam, por gosto, cheiro e gesto, à minha família no Brasil. Foi um ano em que conheci mais da metade das vinte regiões italianas, até finalmente ir estudar em Reggio Calabria.
Decididamente ortodoxa e considerada um dos portais para o mundo helênico, a região preservava vivamente suas raízes linguísticas, gastronômicas, musicais... Muitos vilarejos ao redor, como Gallicianò, Roghudi e Pentidattilo, ainda falavam o griko — uma variante do grego koinē profundamente enraizada na oralidade e tradições locais — e por suas ruas as placas eram bilíngues. Reggio Calabria, por sua vez, era um verdadeiro entroncamento de civilizações: ali convivi com pelo menos quinze idiomas diferentes, na universidade Dante Alighieri, numa confluência de povos e etnias, em que as fronteiras se diluíam e podíamos gozar do fato de sermos, todos, estrangeiros uns para os outros. A cidade se orgulhava, com razão, de abrigar em seu Museu Arqueológico Nacional os célebres Bronzi di Riace, duas enormes esculturas em bronze do século V a.C., cujas expressões e anatomias poderosas emergiram intactas do fundo do mar para reconectar aquela parte da Itália com a antiguidade grega, ortodoxa, judaica e muçulmana.
A Calábria era também terra de transgressões ancestrais. Enquanto revoltas camponesas irrompiam como resistência às estruturas do mundo feudal, Tommaso Campanella — nascido em Stilo, no coração da região — desafiava os dogmas da igreja e as verdades herdadas da escolástica aristotélica. Entre prisões e interrogatórios, Campanella sonhou com uma sociedade regida pela razão, pela astrologia e por uma comunhão de recursos e bens, escandalizando os defensores da ordem. Um pensamento heterodoxo, típico das civilizações do Mediterrâneo, coexistia com rebeldia social e moral, nas paisagens abruptas da Calábria, onde o terreno montanhoso e a memória helênica conspiravam, desde sempre, contra qualquer forma de obediência cega.




6. Ecos de insurgência: da fábula ao ofício
Sempre me despertaram muita curiosidade as insurgências no mundo antigo. Desde criança, ouvia com fascínio relatos de tonéis de azeite fervendo sendo despejados das ameias de castelos aragoneses sobre aqueles que ousavam rebelar-se. Essas narrativas, misto de história e fábula contadas por meu pai, falavam de camponeses famintos que, armados apenas com foices, ancinhos e paus, escalavam muralhas e desafiavam senhores poderosos. Sempre entendi esse lugar como espaço de uma força rebelde que reaparecia ciclicamente na minha vida, como um fio atravessando e conectando os tempos.
7. Travessias americanas
Da Argentina a Cuba, de Cuba à Itália, da Itália aos sertões de Minas e Tocantins, cheguei aos Andes argentinos, bolivianos e peruanos quando me tornei professor adjunto na UERJ — onde estudei durante a graduação, o mestrado e o doutorado. Vivi por um ano na zona andina da Argentina, em Jujuy, e mais um ano aos pés das serras de Córdoba, realizando pesquisa de pós-doutorado em centros do CONICET. Conheci arquivos, pessoas e paisagens, e vivi a generosidade da Argentina na pele. Aprendi a amá-la como minha segunda casa.
Um dos irmãos da minha avó, que viera à América no mesmo navio que ela, imigrara para Buenos Aires. A nonna seguiu com o marido para o Rio, e o outro irmão continuou viagem, fixando-se com a família em Nova York. Estar na Argentina era, de certo modo, estar também em minha própria casa. Visitei as sinagogas locais, conversei com o rabino Yovi e com o rabino Marcello Polakoff, e iniciei estudos com o rabino Gabriel Pristzker — uma imersão em minhas origens, reconectando sentidos e reconstruindo memórias.


8. Bolívia: o arquivo e a praça
Há cerca de dez anos, cheguei a Sucre, na Bolívia, para participar de um congresso da Associação de Estudos Bolivianos — um encontro que logo se revelou transcendental: tanto pela relação com a pesquisa histórica e etnográfica quanto pelos vínculos humanos que ali se formaram. Ali conheci pessoas que tornaram-se amigos chegados e parceiros de trabalho. A Bolívia tornou-se um daqueles mananciais aos quais sempre desejo retornar — uma terra generosa, bela e decididamente insurgente. Acompanhei, na leitura de documentos e na experiência cotidiana, muitas rebeldias que paravam a cordilheira e as serras, ao mesmo tempo em que aprendia que outras tantas ocorriam de forma discreta: nas ruas e praças, nos mercados e comunidades, em pequenos gestos, detalhes, práticas cotidianas tão decididamente locais quanto universalmente potentes.
9. Outono francês e retorno à Itália
Em outubro de 2022, tirei uma licença-prêmio e pude passar uma temporada na França, entre os Altos Alpes, Marselha, Nice, Paris e Grenoble. Visitei Mônaco e a Suíça com Stéphanie e Philippe, meu anfitrião, que dirigia o teatro nacional de Gap. Com eles assisti a toda a temporada de espetáculos da cena nacional. Entrevistei uma pastora de ovelhas que também realiza um trabalho fotográfico e artístico ao redor da figura do lobo, o vilão dos pastores alpinos. Reencontrei meu primo Francesco em Roma, vinte e cinco anos depois, e revi em Paris Olivier Zabat e Emmanuelle Manck, cujo filho, Adrien, tem apenas alguns anos a menos que meu filho, Luca, terminava o mestrado em Matemática na Jussieu-Paris Rive Gauche.


10. Afetos que atravessam fronteiras
Antes de voltar ao Rio de Janeiro, em janeiro de 2023, fui visitar Carmen Bernand em sua casa em Paris. Disse a ela que não sabia como, nem quando, mas que a levaria à minha alma mater. Em março de 2025, no final da minha gestão como coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ, consegui trazê-la para o seminário comemorativo dos trinta anos do Programa. Na ocasião, também participaram outros historiadores de grande destaque: Christine Hunefeldt e Paola Revilla Orías — nós três nos conhecemos em Sucre, em 2015 — Henrique Espada Lima, com quem iniciei um pós-doutorado no ano passado no Programa de Pós-graduação em História Global da UFSC, e a historiadora urbana da Columbia University, Amy Chazkel.
Essa história continua...
1. Geografias marginais, vocações rebeldes
Há muitos anos venho me dedicando ao estudo da rebeldia, da contestação e das práticas de resistência, em diálogo com experiências históricas forjadas no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro — um território onde a transgressão social e política antecede, em muito, a chegada das naus europeias. O Rio foi palco de guerras indígenas, insurreições de africanos escravizados, revoltas de colonos alemães e até motins de "famélicos e ébrios" mercenários irlandeses que, segundo a documentação, queixavam-se de terem sido trazidos de tão longe apenas para passar fome: o pão, diziam, "era tão máo que nem o cavallo o queria comer". Cidade atlântica, marcada por encontros e conflitos, sua vocação histórica para a rebeldia é profunda, plural e contínua.

Fotografia: Philippe Ariagno
