Nas brechas da história: rebeldia, silenciamento e futuros ancestrais entre a Grécia e a América Latina

Alexandre Belmonte

6/16/202541 min ler

.Nas brechas da história: rebeldia, silenciamento

e futuros ancestrais entre a Grécia e a América Latina

Alexandre Belmonte

Resumo

Este ensaio propõe uma leitura crítica do poema “À maneira de G. S.”, de Giorgos Seferis, articulando-o a uma reflexão sobre memória, historiografia e arquivos, a partir de uma perspectiva conectada entre os mundos grego e latino-americano. O verso inaugural, “Aonde quer que eu viaje, a Grécia me fere”, condensa a tensão entre memória, ruína e mercantilização do passado, colocando em relevo o esvaziamento simbólico de paisagens, cosmologias e panoramas históricos. Estabelece-se um paralelo entre a Grécia e a América Latina, ambos mundos marcados por processos de folclorização, apagamento e museificação de seus legados indígenas. A análise recupera a dimensão contrafactual de eventos ocorridos em ambas margens imperiais, e sugere que tais questionamentos permanecem como feridas abertas e futuros não realizados. A partir do diálogo entre poesia e história, entre ruína e resistência, propõe-se reinscrever os vencidos como protagonistas históricos, cultivando brechas para imaginar outras formas de existência política e social.

Abstract

This essay offers a critical reading of Giorgos Seferis’s poem “In the manner of G. S.”, intertwining it with a reflection on belonging, identity, and insurgency through a comparative lens between Greek experience and Andean indigenous rebellions. The opening verse – “Wherever I travel, Greece wounds me” – encapsulates the tension between memory, ruin, and the commodification of the past, putting in relief the symbolic hollowing of historical landscapes and panoramas. A parallel is drawn between Greece and the Andes, both marked by processes of folklorization, erasure, and museification of their insurgent legacies. The analysis recovers the counterfactual dimension of rebellions occurred in both colonial worlds, and suggests that such insurgencies endure as open wounds and unaccomplished futures. Through the interplay of poetry and history, of ruin and resistance, the essay advocates for reinscribing the defeated as historical protagonists, cultivating fissures to envision alternative forms of political and social existence.

Keywords: Giorgos Seferis; rebellions; counterfactual history; insurgent cosmologies; connected history

Aonde quer que eu viaje, a Grécia me fere.

Όπου και να ταξιδέψω η Ελλάδα με πληγώνει.

Giorgos Seferis

0. Feridas de Esmirna

Na abertura de um de seus poemas mais pungentes, o escritor e prêmio Nobel grego Giorgos Seferis (1900-1971) condensa a tensão entre identidade grega e melancolia histórica, conflito que atravessa sua obra por meio de potentes passagens e perplexos questionamentosUm século após a independência, o elogio épico já não se sustenta. Giorgos Seferis encarna ele próprio esse desencanto: nascido em Esmirna (Smyrna) em 1900, mudou se com a família para Atenas ainda jovem, antes dos eventos de 1922, quando a cidade foi incendiada e as populações gregas foram massacradas pelas tropas turcas . Embora não tenha vivido essa catástrofe diretamente, foi profundamente afetado por sua memória. Refugiado com a família, instalou se em Atenas ainda jovem, justamente quando os gregos pônticos, ao norte da Anatólia, eram submetidos a deportações em massa e longas marchas forçadas que resultariam na morte de milhares. Nos anos seguintes, o avanço dos nacionalistas turcos culminaria na destruição de Esmirna e no aniquilamento das comunidades gregas da Ásia Menor. Em Atenas, descobriu uma Grécia que, longe de ser soberana e realizada, permanecia colonizada de várias maneiras: politicamente dependente, economicamente frágil, simbolicamente prisioneira de um passado heroificado. Nem todo o filo helenismo do mundo foi capaz de impedir a tentativa de genocídio contra os gregos pônticos e os gregos da Ásia Menor, tratados como estrangeiros em terras que habitavam há séculos. Dessa experiência fundadora nasce uma consciência poética ferida, marcada tanto pelo exílio quanto pela desilusão diante dos limites do Estado nação grego. Resta, então, ao poeta a queixa lírica: uma elegia atravessada por símbolos, desencanto e inquietação.

1. Ruínas estetizadas: À maneira de G. S. e a crítica à museificação

A Grécia que fere o poeta não é aquela do passado heroico, mas o seu espectro: uma Grécia de promessas adiadas e de profecias não cumpridas. É a Grécia da ruína persistente, transformada em commodity de exportação, em destino turístico idealizado e em território de mitos fossilizados. Em suas praias e por suas montanhas respira-se o ar de longas esperas e esperanças frustradas. É verdade que muitas pessoas ao longo da história sentiram uma espécie mesmo de arrebatamento e de eternidade ao passarem pela Grécia, e até mesmo Freud desmaiaria ao chegar pela primeira vez no alto da Acrópole .

Como um itinerário fragmentado, À maneira de G.S., vai se estruturando ao evocar um caleidoscópio de lugares, sons e símbolos. Sabemos de antemão que é à maneira do poeta. O poema percorre montanhas, ilhas, cidades e portos, e revela o abismo entre um passado monumental e um presente esvaziado de sentido e de vínculos. A topografia histórica da Grécia – Salamina, Atenas, Pireu, Omonia, Syndagma – não aparece em Seferis como um território vivo e habitado, mas apenas como uma superfície mítica e desarticulada, cenário de deslocamentos banais. Michael Herzfeld mostrou como, ao longo do século XX, a identidade grega moderna foi construída a partir de uma oscilação entre monumentalidade e domesticidade: de um lado, a exaltação de uma antiguidade grega, voltada à legitimação da Grécia perante uma Europa historicamente filo-helênica; de outro, a valorização de um certo cotidiano, com suas tradições e costumes que, embora sustentasse alguma coesão e autenticidade interna, era estigmatizado e rebaixado diante do ideal nacional monumental (Herzfeld 2008, 45). O poema de Seferis desvela justamente a fratura dessa lógica: entre ruínas que se pretendem eternas e cotidianos destituídos de densidade histórica, emerge uma Grécia espectral, suspensa entre mito, memória e esquecimento.

Essa Grécia que assombra Seferis é mais do que uma nação moderna em crise: é todo um palimpsesto de camadas civilizatórias em ruína, onde a continuidade histórica deixou de ser um fio que unia, tornando-se um dos dilemas historiográficos da Grécia republicana e da própria identidade nacional grega. De qualquer perspectiva que se olhe a problemática, será necessário descortinar feridas coloniais, massacres imperialistas e “injustiças” históricas. A Grécia produzira demasiados mártires. Demasiadas histórias. Seus antigos e históricos portos, ilhas e santuários não figuram no poema como a celebração de uma herança: estão ali justamente para revelar o abismo entre o nome e seu significado, entre passado, memória e presente. A linguagem, que outrora carregava sentidos partilhados, torna-se veículo de exílio e de dissonantes monólogos. Nesse processo, a pátria deixa de ser um chão seguro para converter-se em território de perda: como habitar algo ausente?

A ferida aberta pela modernidade não está no passado que se foi, mas no presente que insiste em maquiá-lo sob as ruínas estetizadas de uma antiguidade idealizada. Contra essa estetização superficial, Seferis invoca uma poesia de fraturas, feita de silêncios e desencaixes, uma arqueologia do íntimo onde o sujeito já não coincide com a história. Aquilo que em sua obra aparece como crítica lírica à banalização da ruína encontra, em nosso tempo, novas formas de realização. Delia Tzortzaki mostra como projetos de “arqueologia virtual”, como a Journey Through Ancient Miletus, prometem devolver o passado ao visitante, mas na verdade constroem uma sensação enganosa de presença. A virtualidade, ao oferecer a ilusão de transparência e autenticidade, projeta discursos ideológicos e interesses contemporâneos sobre o passado, convertendo-o em simulacro lúdico (edutainment) e em mercadoria turística (Tzortzaki 2008, 147). A estetização que fere Seferis reaparece, assim, sob novas roupagens: a ruína já não é apenas turistificada, mas virtualizada, reconstituída como espetáculo consumível, território digital livre de conflitos, produto pronto para ser consumido.

A voz poética de Seferis registra, com ironia, impaciência e tédio incontidos:

O que querem todos aqueles que dizem

que estão em Atenas ou no Pireu?

Um vem de Salamina e pergunta ao outro se “vem de Omonia”

“Não, venho da Syndagma”, responde, satisfeito:

“Encontrei o Yiannis e ele me pagou um sorvete.”

Enquanto isso, a Grécia viaja

não sabemos de nada, não sabemos que todos nós estamos desembarcados,

não conhecemos a amargura do porto quando todos os navios partem;

zombamos daqueles que a sentem.

Mundo estranho, que diz estar na Ática e não está em lugar algum;

compram confeitos para se casar,

levam mechas de salvação, tiram retratos.

A Grécia que aqui se manifesta é fantasmagórica, um espaço que se pretende situado, mas que “não está em lugar algum”; uma entidade que viaja, mas que já desembarcou sem ao mesmo se dar conta. A banalidade dos gestos cotidianos – tomar sorvete, comprar confeitos, tirar retratos – aparece como sintoma da alienação profunda entre os lugares e nomes carregados de história, narrados ao longo dos tempos em verso e prosa, contados por rapsodos e conhecidos nos quatro cantos do mundo, e a realidade da Grécia pós-Catástrofe de Esmirna. É nesse esvaziamento de sentido que o poema revela a perda da espessura histórica da experiência, a despolitização da paisagem e da linguagem, a falta de vínculos entre significado e significante, e, finalmente, o desencantamento diante de um mundo que já não reconhece seus próprios fantasmas.

Nessa superfície encenada, em que todos “dizem estar na Ática” mas “não estão em lugar algum”, a rebeldia do poeta é sufocada sob uma camada de cotidiano, sem qualquer real profundidade, mas suficientemente densa a ponto de obnubilar o passado. Contra a banalização da história e a turistificação da ruína, a poesia de Seferis se ergue como rebeldia: um chamado ao desconforto, o reconhecimento de uma ausência, o incômodo de quem ainda se lembra que, um dia, ali, houve tragédia, luta e exílio. O cotidiano esvaziado de sentido projeta os personagens do poema como sonâmbulos em uma noite sem fim, movendo-se por instinto, oníricos e alheios à própria condição. A imagem dos navios ao entardecer no Pireu instaura uma atmosfera suspensa, de estagnação melancólica e ausência de horizonte:

Os navios apitam agora que anoitece no Pireu -

apitam sem parar, apitam – mas nenhum estivador se move,

nenhuma corrente brilha molhada à luz que se extingue,

o capitão permanece petrificado entre branco e dourado.

Aonde quer que eu viaje, a Grécia me fere;

cortinas de montanhas, arquipélagos, granitos nus…

O navio que viaja se chama AGONIA 937.

O navio leva o nome de uma dor que é numerada e burocrática, como se fosse inescapável, metáfora contundente da condição do grego: um povo em deslocamento constante, sem rumo definido, sem promessa de retorno ou de redenção. A travessia não é uma escolha, mas destino. O incêndio da cidade de Esmirna em setembro de 1922 reduzira a cinzas a ideia de uma “Grande Pátria Grega” retomando antigas cidades-estado em território turco. Não há sombra de consciência histórica entre os que se movem no poema: vivem entre ruínas e simulacros, engajados em gestos automáticos (a conversa trivial, o sorvete ofertado), enquanto a “verdadeira Grécia”, personificada, continua a “viajar” (η Ελλάδα ταξιδεύει), uma entidade errante e inquieta, toda ela uma ferida aberta. Τη καρδιά μου ταξιδεύεις σ’άλλοι γη – “transportas meu coração a outras terras”, diz o verso de uma canção popular na Grécia. A etimologia da palavra ταξιδεύω (taxidévo) reforça essa tensão: viajar é ao mesmo tempo transportar e ser transportado. À maneira de G.S. mostra um descompasso trágico entre o que a Grécia carrega consigo e o lugar para onde é transportada: não rumo ao “futuro”, mas de volta a uma gaiola de narrativas estanques, uma espécie de “não-lugar”, um tempo eterno em que mitos fossilizados ocupam o lugar de sentidos vividos.

Ao registrar essa travessia desprovida de destino certo ou horizonte visível, Seferis anuncia tanto a perda de um território físico quanto a fragilidade da espessura ontológica do pertencimento. Ele nomeia lugares carregados de experiências, memórias e sentidos políticos, mas os apresenta reduzidos a pontos banais de passagem, quase como estações de ferrys ou trens, desvelando uma crise histórica e epistemológica mais profunda: a da desterritorialização simbólica, e da substituição da experiência vivida por uma geografia de simulacros. Os nomes persistem, mas os vínculos históricos se dissiparam; a terra permanece, mas os sentidos que a animavam foram corroídos por camadas de superficialidade performada. Essa Grécia esvaziada, percorrida apressadamente por personagens que ignoram “a amargura do porto” e “zombam da dor” – sua própria dor, também, à medida que ele próprio chegara a Atenas pelo Pireu – configura-se como alegoria de um mundo que já não sabe mais onde pisa, que não reconhece os seus mortos, que jazem sob os próprios pés, e que “consome passado” como consome outras mercadorias. Há nesse itinerário interrompido o eco de outras paisagens, marcadas por guerras e rebeliões, exílios históricos e apagamentos sistemáticos. Seferis conheceu muito cedo os horrores de uma perseguição mais que simplesmente religiosa, linguística ou “cultural” em sentido amplo, mas uma perseguição reconhecidamente genocida . Mal havia passado quinze anos desde que milhares de gregos foram obrigados a fugir de uma Esmirna completamente incendiada pelas tropas turcas. A continuidade histórica da Grécia e de uma possível identidade grega contou com episódios dramáticos que custaram milhares de vidas. E nada disso lhe parecia visível em Atenas. É nesse ponto que a errância de Seferis transforma-se em metáfora da errância dos gregos, e começa a ressoar, de forma inquietante, com outras formas de desenraizamento forçado e silenciamento simbólico, dentre as quais destaca-se a condição do indígena americano.

2. O indígena como endógeno: deslocamentos conceituais e sincronicidades epistemológicas

Não seria estranho que usássemos um “paradigma grego”, como há mais de dois milênios o fazemos, tomando a Grécia como um espelho onde podemos, novamente, enxergar o reflexo das nossas próprias humanidades. Tampouco há nada de conservador no diálogo com a Grécia, no sentido dos atavismos históricos ou de uma nostalgia romantizada – ao contrário. A continuidade histórica da Grécia e dos gregos continua a ser um enigma e um grande tema da historiografia, pelo seu enorme dinamismo, pelo jogo entre conservadorismo e inovação, através dos idiomas helênicos, alguns reduzidos a “dialetos”, outros reconfigurados e pensados para ser o trânsito entre o grego antigo clássico e o vernáculo popular, dimotiká, língua do povo. A Grécia é também o lugar onde os judeus converteram-se em massa ao cristianismo. As nuances da fé, devoção e piedade ortodoxas fazem pensar no fervor e simplicidade dos primeiros conversos. Há coisas que parecem se manter inalteradas quando ao redor mudam sistemas de governo, religiões e idiomas.

Nessa Grécia em trânsito, suspensa entre memória e esquecimento, reverbera a condição histórica do indígena, revelando-o em sua singularidade radical frente ao “colonizador”: o indígena é o endógeno. Vistos em contraste o indígena americano e o endógeno grego, talvez um possa refletir o outro em alguma medida. Propomos aqui um deslocamento etimológico deliberadamente simbólico da palavra “indígena”, não a partir de sua raiz latina (indus, “dentro” + gignere, “gerar”), mas pela sua aproximação com a palavra grega endógeno (ἔνδον, “dentro” + γένος, “geração”) . Não se trata de uma equivalência filológica, que é bastante clara, mas de reconstruir a provocação epistêmica que a palavra comporta: a de pensar o indígena como aquele que se inscreve dentro de um território relacional e persistente, um sujeito cuja existência está ancorada em cosmologias de reciprocidade, pertença e continuidade em relação à terra em que nasce. O endógeno está constituído do tempo profundo da paisagem, mantendo vínculos com seus vivos e mortos, com os ciclos de seu mundo e com os ritmos cosmológicos que entrelaçam vida, terra e destino. Justamente por isso, o sujeito endógeno é o alvo preferencial das violências imperiais, que transformam a terra em recurso, a paisagem em mercado e o corpo em mero dado estatístico. A expropriação começa pela terra e seus recursos, e avança sobre os corpos, as linguagens, as narrativas, a memória e os sentidos do existir. Contra esse apagamento, insurgem-se verdadeiros arquivos vivos, como as ruínas evocadas no poema de Seferis, e o próprio poema em si, onde o pertencimento ainda resiste como uma lembrança de que o passado não está morto, mas em latente estado de vigília.

Ser endógeno designa um modo de pertencimento que não é uma concessão do poder imperial, mas sim afirmado contra ele. É um pertencimento irredutível, que não pode ser traduzido integralmente a partir das nomenclaturas e categorias do império. É um pertencimento que precede historicamente a ordem imperial, e que sobrevive à sua crise e reconfiguração; e, enfim, é um pertencimento imanente, persistindo durante a violência imperial, atravessando-a como uma camada subterrânea de sentidos vivos. Nesse horizonte, o pertencimento endógeno se converte em obstáculo: por não caber na gramática normativa, proprietária e administrativa do império, torna-se seu limite mais tenaz. É uma inscrição no mundo como vínculo, não como posse; uma forma relacional de enraizamento cosmológico e político que se opõe à lógica proprietária. É, ao mesmo tempo, resistência aos dispositivos centrais do imperialismo: à extração, que transforma a terra em recurso; à desterritorialização, que rompe continuidades espaciais e culturais; e ao apagamento simbólico, que busca neutralizar memórias e cosmologias locais.

Contra a representação do indígena como figura fossilizada do passado, pensamos aqui o endógeno como sujeito histórico pleno, portador de cosmologias vivas e de práticas políticas autônomas, sempre à beira de um destino ainda em aberto. Nascer ou viver na Grécia, no Peru, na Bolívia ou no Brasil não implica, por si só, qualquer vínculo necessário com as cosmologias e legados indígenas desses territórios, muitas vezes reduzidos a marca turística, signo exótico ou expressão folclorizada. A autonomia indígena, quando não é negada, permanece sob vigilância constante de estruturas mais poderosas, que a submetem tanto a narrativas culturalmente legitimadas quanto a dispositivos institucionais de controle físico e de hierarquização social. É nesse ponto que a impaciência e a irritação de Seferis diante da banalidade de um cotidiano sem consciência histórica se entrelaçam à crítica indígena contra a apropriação de símbolos ancestrais pelo mercado, pela política ou pela igreja. Em ambos os casos, os símbolos aparecem esvaziados de suas cosmologias e sentidos originários, endógenos. O paradoxo se revela no emblema maior dessa condição: o indígena não é proprietário da terra, mas, ao contrário, é “a terra que o possui” , formulação poética e radicalmente dissonante em um mundo regulado por mercados e investimentos.

Assim como Seferis afirma que os gregos modernos estão todos “desembarcados” (είμαστε ξέμπαρκοι όλοι εμείς), privados da âncora simbólica que os ligava a uma continuidade civilizacional, também os povos indígenas foram progressivamente desalojados de suas próprias cosmologias. Nem a modernidade os integrou plenamente, nem suas tradições foram autorizadas a florescer como horizonte político. Pelo contrário: foram reelaboradas, domesticadas e folclorizadas ao sabor das elites. Desse processo nasceu um regime em que os vestígios do passado não apenas convivem com um presente que os desconhece, mas são convertidos em matéria-prima de mitologias políticas. De ideologia em ideologia, distorcem-se epistemes e ontologias, e produzem-se tantas representações do indígena quantas forem necessárias para sustentar projetos políticos diversos.

3. Rebeldias comparadas: Andes e Bálcãs entre insurgência e domesticação

Esse processo não se limita às Américas. Na Grécia e nos Bálcãs, sob o jugo otomano e mais tarde no interior do Estado-nação grego, muitas tradições locais foram igualmente domesticadas. Costumes comunitários, práticas rituais e formas próprias de mediação política foram recodificados como folclore ou convertidos em símbolos “populares” a serviço de narrativas nacionais. A figura dos kleftes, rebeldes e combatentes gregos contra o Império Otomano, foi apropriada como emblema épico da independência grega, romantizada na forma heroica, enquanto se apagava sua dimensão social e humana, marcada pelo caráter endógeno, marginal e profundamente comunitário desses sujeitos. Assim como os indígenas das Américas, os povos balcânicos e insulares foram submetidos a um deslocamento simbólico: o que antes era experiência viva converteu-se em mito político, apropriado e estetizado. Um exemplo eloquente está na publicação, em pleno calor da Revolução Grega, das Chansons populaires grecques por Claude Fauriel (1824), que reuniu e traduziu cantos de resistência dos kleftes, monumentalizando-os como expressão de um “espírito nacional grego”, convertendo-os em peças do folclore nacional.

Essa operação não era isolada: na mesma década de 1820, marcada simultaneamente pela Revolução Grega e pelas independências latino-americanas, a Antropologia se gestava paralelamente a partir de operações semelhantes de “tradução” de culturas. Intelectuais e viajantes compilavam e publicavam narrativas, cantos e costumes indígenas da América como se fossem testemunhos de um passado em vias de desaparecimento. No México independente, estudos como os de Carlos María de Bustamante recuperavam crônicas e tradições nahuas para forjar uma identidade nacional ; nos Andes, ainda sob o impacto das rebeliões do fim do século XVIII, viajantes e letrados recolhiam relatos que reinterpretavam os incas como herança simbólica da nação nascente ; na Amazônia, naturalistas europeus como Spix e von Martius (em expedição entre 1817 e 1820, com publicações na década seguinte) já classificavam narrativas e práticas ribeirinhas locais dentro de um quadro pretensamente “científico” e mesmo etnográfico. De forma análoga ao que Fauriel fez monumentalizando os cantos kléfticos, esses autores estetizavam e cristalizavam cosmologias vivas em categorias de folclore, ciência ou patrimônio, catalogadas dentro do espírito científico e liberal de uma Europa em reconfiguração geopolítica, especialmente após o Congresso de Viena. Visto sob essa perspectiva, o indígena não é apenas o aborígene das Américas; é também o espelho invertido de seus antípodas no Mediterrâneo oriental, igualmente marcados por deslocamentos, apropriações e silenciamentos.

O império Otomano estruturava seus territórios no Mediterrâneo Oriental por meio do sistema de timar, que concedia terras a cavaleiros (sipahis) em troca de serviço militar, e do iltizam, sistema de arrendamento fiscal pelo qual indivíduos denominados mültezim compravam o direito de arrecadar tributos em determinada região. No mundo hispano-americano, os mecanismos tinham outros nomes, mas operavam com lógica análoga: a encomienda outorgava a um colonizador o direito de receber terras, tributos e trabalho de comunidades indígenas em troca de proteção e evangelização; a mita impunha um regime de trabalho rotativo e compulsório, obrigando as comunidades a enviar parte de seus membros para minas, haciendas ou obras públicas. Em todos esses casos, vilarejos insulares, ayllus e aldeias nas montanhas, conventos e mosteiros, que antes se organizavam a partir de redes de reciprocidade e geografias sacralizadas, foram recodificados como polos administrativos, submetidos a uma racionalidade fiscal que esvaziava seu caráter cosmológico e a relação endógena entre os locais e a terra. Como nas Américas, também nos Bálcãs e nas ilhas do Egeu a paisagem deixou de ser território vivido para tornar-se recurso mensurável, classificado e cartografado. Essa convergência não é fortuita. Desde os tratados de Tordesilhas e Saragoça até as encomiendas, mitas e cartografias fantásticas da América “tropical”, o espaço colonial foi ordenado a partir de uma lógica que separava o mundo físico do mundo social, a natureza da cultura. Esse binarismo apagou cosmologias locais e naturalizou a violência epistêmica do imperialismo. Algo semelhante ocorreu na Grécia moderna, onde, como observa Mark Mazower, a arqueologia tornou-se parte integrante do nacionalismo territorial, transformando escavações e museus em instrumentos de legitimação política e em provas simbólicas da “helenicidade” da terra (Mazower 2008, 35) . Em ambos os casos, a paisagem deixa de ser território vivido para converter-se em recurso classificado e apropriado, inscrito em cartografias imperiais ou nacionais.

Na América indígena, como na Grécia de Seferis, a paisagem é toda ela um arquivo. Cada montanha guarda nomes, cultos e histórias tão antigas e indocumentadas que foram relegadas ao campo da mitologia. Cada cume ou praia abre uma brecha no tempo, onde coexistem o passado idealizado, a violência imperial e o presente marcado pela expropriação simbólica e material. As ruínas de Cuzco e Machu Picchu, assim como as de Micenas ou Delfos, sustentam silêncios densos que desafiam qualquer leitura linear da história. O tempo, aqui, é espiralado e descendente: não avança em linha reta rumo a um “futuro”, mas conserva feridas abertas, sem qualquer cronologia bem resolvida a ser celebrada. À maneira de G. S. pode, assim, ser lido como uma convocação à escuta profunda das ausências, dos esquecimentos e dos apagamentos. O poeta não fala apenas da Grécia: ele interroga a linguagem da história e desconfia da narrativa épica, expondo seus mecanismos de esquecimento. Se, no imaginário da década de 1930, a Grécia era vista como um grande monumento a céu aberto, Seferis desmonta essa imagem, revelando suas ranhuras, desnudando uma nação ainda em formação e recusando a visão turística e domesticada de uma pátria sem conflitos, feita de mitos estanques e paisagens paradisíacas. Ao longo do século XX, essa mesma Grécia converte-se em paraíso de milionários, enquanto os problemas sociais e a pobreza se agravam, alienando as comunidades endógenas de seus territórios de origem.

A força do verso de Seferis ‒ “Aonde quer que eu viaje, a Grécia me fere” ‒ reside justamente na condensação lírica de uma percepção trágica da história: a experiência de habitar um mundo onde o passado é onipresente e palpável, mas que carece de vínculos para preencher o abismo entre o que foi e o que é, entre a memória e o esquecimento, entre os vestígios materiais e simbólicos e a uma consciência histórica mais profunda. Porque o passado não é apenas o que passou, mas sobretudo o que se contou, como se contou, e o que se ocultou. Esse mesmo tipo de percepção dilacerada da história está no cerne da experiência indígena, andina, amazônica, latino-americana. É o trauma vivido nas margens imperiais, a desgraça dos colonizados e o soterramento de suas cosmovisões pela religião imposta, pelos modelos de comportamento social, pelo trabalho compulsório, pela acumulação de bens, pela destruição dos ícones do indígena americano e do grego. Esse desconforto se manifesta nos cantos que já não encontram eco, nas danças convertidas em espetáculo para turistas, nos monumentos aos vencedores erguidos com o suor dos vencidos. Está igualmente presente nos nomes de ruas e praças dedicados a líderes indígenas, ao mesmo tempo em que seus descendentes permanecem criminalizados por defenderem suas terras ancestrais.

Nas ilhas e aldeias gregas submetidas à especulação imobiliária, seus próprios endógenos resistem à gentrificação e ao deslocamento. Retomar Giorgos Seferis e, a partir dele, pensar desde a América Latina significa praticar uma “solidariedade epistêmica”, que evidencia como, em ambos os mundos, as cosmologias endógenas são corroídas pela mercantilização da memória e pela transformação de narrativas em mercadorias. Esses recursos são hoje mobilizados para orientar políticas públicas para a educação e para o planejamento urbano, legitimam investimentos e justificam o apagamento de histórias e cosmologias consideradas “indesejáveis”. Tanto nos Andes e na Amazônia quanto no Egeu e nos Bálcãs, há um excesso de silêncio por toda parte, em montanhas, praias, rios e ruínas. Silêncios que, se escutados, ainda têm muito a dizer.

Porque parte de um profundo sentimento de injustiça (Moore 1978), Seferis produz uma poesia rebelde, aproximando-se de outras rebeldias que resistem à museificação. Ele descreveu a reabertura do Museu Arqueológico Nacional em 1948 como “um coro de ressuscitados, uma segunda vinda de corpos que te davam uma alegria louca” (Mouliou 2008, 90). A experiência poética é de epifania e tem caráter litúrgico: não são simples objetos que retornam, mas corpos que ressuscitam, impondo sua presença ao visitante e ferindo-o com a intensidade da história que carregam. Marinos Kalligas interpretou o mesmo acontecimento como um momento de ressurreição nacional, um “evento cultural de significado global” que reafirmava a “continuidade helênica” e a “mitologia europeia” como valores a serem defendidos (Mouliou 2008, 91). Seferis percebeu o impacto lírico e litúrgico da presença de um passado, ainda que idealizado, e Kalligas viu nesse êxtase a oportunidade de consolidar a unidade da nação e inscrevê-la num projeto geopolítico mais amplo. É um contraste revelador: a ressurreição no museu não era uma simples metáfora estética, era antes de mais nada instrumento de legitimação política. O retorno dos corpos podia ferir o poeta como monumentos de memória, mas também servia para domesticar a Antiguidade como “naturalmente” parte de uma continuidade nacional. Assim, a museificação aparece como operação ambígua, em que ressuscita corpos para estetizá-los e controlá-los. Na América Latina, encontramos operação semelhante com os legados indígenas, muitas vezes lembrados como símbolos de origem, mas esvaziados de sua força política e cosmológica. Tanto na Grécia quanto nos Andes e na Amazônia, as histórias de insurgências endógenas foram convertidas em ícones estáticos, expostos em vitrines ou monumentos, mas despojados de sua potência disruptiva.

O destino das antiguidades gregas confirma essa ambiguidade. George Tolias demonstrou que o debate em torno das peças expatriadas, como os Mármores de Elgin, não se reduzia a uma mera denúncia de saque, mas se configurava como uma disputa entre o universalismo dos impérios, que apresentavam as ruínas de “civilizações passadas” como patrimônio da humanidade, e a reivindicação nacional grega, que as via como prova de sua própria continuidade histórica (Tolias 2008, 59). No mesmo processo, Daphne Voudouri analisou como o Estado grego recorreu à lei para transformar essas antiguidades em propriedade nacional, reinscrevendo-as na lógica soberana do Estado-nação e nas negociações diplomáticas (Voudouri 2008, 128). Nesse trânsito, os vestígios deixaram de ser marcas cosmológicas e foram convertidos em capital político e mercadoria, destino que não difere daquele reservado a tantos símbolos indígenas, apropriados e folclorizados em nome das novas repúblicas. Trata-se de uma lógica que não desaparece na Grécia contemporânea. Damaskos e Plantzos lembram que os gregos modernos passaram a imaginar a Antiguidade como uma mercadoria cultural, algo que, tal como uma obra de arte, era sempre autêntico, sempre utilizável e eternamente presente (Damaskos e Plantzos 2008, 12). A arqueologia, nesse processo, deixou de ser apenas ciência do passado para tornar-se também vetor de economia simbólica e turística, capaz de oferecer uma Antiguidade pronta para o consumo. O mecanismo não é distinto do que ocorreu na América Latina, onde cosmologias indígenas foram convertidas em emblemas exóticos, apropriados como capital político e mercadoria turística. Tanto em Atenas quanto nos Andes, a memória foi estetizada e transformada em recurso, perdendo a espessura ontológica que a sustentava.

A Grécia fere o poeta, assim como os rebeldes Túpac Amaru e Túpac Katari ferem o latino-americano. Elevados a ícones epistêmicos e transformados em objetos ideais de narrativas nacionalistas, esses personagens são, ao mesmo tempo, celebrados como origem simbólica das repúblicas e excluídos como seus sujeitos históricos. A rebeldia indígena contra a ordem imperial expõe, assim, os limites da narrativa nacional latino-americana, marcada por sua dupla moral: enquanto evoca o indígena como fundamento, relega-o a territórios controlados, seja na literatura engajada, nos preconceitos cotidianos ou sob as lentes vigilantes de um panóptico que lhe nega poder. As insurgências que esses personagens lideraram retornam a nós como feridas abertas. Há demasiada violência envolvida nessas rebeliões e tentativas indígenas de autogoverno. Mutilações, esquartejamentos, empalamentos e extirpação da língua de rebeldes foram práticas amplamente adotadas tanto pelo império espanhol quanto pelo otomano. O sentimento de injustiça que gera os movimentos rebeldes e as rebeldias individuais, junto à violência de sua repressão, nos aparecem em forma de feridas, insistindo em perguntar, de dentro da ruína e das brechas da história: “E se os indígenas tivessem vencido os espanhóis?”

É uma pergunta que reabre o passado como palco de permanente ensaio. Vassilis Lambropoulos mostrou como a tragédia grega moderna, ao retomar a Bacchae de Eurípides em diferentes romances contemporâneos, não buscava repetir o antigo, mas disputar com ele em um novo registro, encenando sempre de novo seus dilemas, sem jamais resolvê-los (Lambropoulos 2008, 163). O passado, nesse horizonte, não é uma “ruína pacificada”, mas um espaço de performance incessante, que insiste em reaparecer como desafio e interrogação. É exatamente essa lógica de reabertura que aproxima os gregos de Seferis e os líderes andinos: ambos nos chegam como feridas encenadas outra vez, não para serem cuidadas e cicatrizadas, mas para manter viva a disputa sobre destinos não cumpridos. A pergunta contrafactual obriga-nos a reimaginar a história a partir de suas fraturas: destinos interrompidos, potencialidades não realizadas e promessas jamais cumpridas. Interpelados por ruínas que insistem em insurgir, já não podemos permanecer no conforto dos marcos narrativos e arquivísticos consagrados pela modernidade. Somos levados a escavar as camadas mais profundas do silenciamento que sustenta os monumentos da ordem, dentre eles, a própria narrativa histórica. Túpac Amaru e Túpac Katari, assim como os gregos de Seferis, não evocam apenas o passado: eles retornam como feridas que se recusam a cicatrizar, enquanto o mundo que as produziu continua a operar sob novas formas, mas sempre recorrendo a mecanismos de exclusão, silenciamento e apagamento de histórias, sujeitos e coletividades condenados às sombras.

4. Arquivos e paisagens: memória, silêncios e violência imperial

Essa recusa em cicatrizar é o que dá à temática da rebeldia sua atualidade e ubiquidade radicais. A cada gesto de resistência, reativam-se cosmologias políticas que a história oficial tentou enterrar sob o peso de uma suposta conciliação nacional, de retóricas desenvolvimentistas, de planos econômicos “milagrosos” e, portanto, sempre frustrantes. Nas montanhas e vales andinos, como nas montanhas e arquipélagos gregos, os arquivos não se restringem a documentos: estão inscritos na terra, esculpidos em pedra, nos corpos, nos cânticos, nos silêncios ritualizados, no perene sentimento de injustiça traduzido em transgressões e rebeldias as mais diversas. O tempo linear que sustenta a narrativa histórica moderna, com seu progresso cumulativo e suas derrotas resignadas, é desestabilizado por essa outra temporalidade, onde o passado não está morto, mas sim em estado de vigília, e onde a história não é uma linha, mas uma espiral feita de retornos e lampejos. É a rebeldia, em sua densidade cosmológica e política, e em seu enraizamento inescapável ao endógeno, que rompe o tempo retilíneo do imperialismo e reabre a possibilidade do porvir.

A rebelião, nesse sentido, não é apenas um evento político: é uma categoria analítica e existencial que permite pensar a história desde suas margens, suas montanhas, ilhas, sertões e subterrâneos. Pensar com Seferis e com os insurgentes andinos é pensar desde os interstícios da memória, onde ainda podem falar muitas vozes que foram obrigadas a calar. Trata-se de buscar encontrar, nas ruínas da modernidade, sob os escombros de um “mundo vencido”, os rastros de outros mundos possíveis. E perguntar por eles, ainda hoje, é uma forma de recusar a vitória dos vencedores. Essa escuta das brechas e das ruínas nos convida a deslocar a história de seus centros canônicos e seus arquivos autorizados. Como propôs Michel-Rolph Trouillot, o poder de silenciar faz parte da própria produção da história: não se trata apenas do que aconteceu, mas do que pôde ser narrado, legitimado e arquivado. Os vencidos, frequentemente, não foram apenas derrotados em campo, mas também nos registros históricos que sobreviveram. É por isso que olhar para a rebelião na história exige também uma crítica do arquivo, uma busca por documentos oblíquos, vestígios interrompidos, vozes transversas que escaparam ao crivo da normalização estatal, ao mesmo tempo em foram excluídas dos anais da história. Pensar com tais arquivos insurgentes é reabrir a história às suas ausências e silêncios eloquentes e àquilo que ainda insiste em ser dito, mesmo que pelas margens. A poesia de Seferis se inscreve nessa brecha.

Nesse sentido, pensar com a poesia uma história contrafactual não deve ser confundido com pensar pela ótica da ficção ou de alguma anacrônica forma de nostalgia de uma antiguidade romantizada. O contrafactual opera como ferramenta crítica, desnaturalizando o real, interrogando seus destinos interrompidos. Imaginar “e se os indígenas tivessem vencido os espanhóis já no final do século XV, quando chegaram as primeiras caravelas?”, ou “e se os gregos tivessem derrotado os otomanos já no século XIV e jamais tivessem vivido sob seu jugo?” é confrontar as condições de possibilidade da derrota, e, ao fazê-lo, escancarar os mecanismos que sustentaram as vitórias dos impérios. Não se trata de construir utopias inofensivas, mas de reinscrever no presente as virtualidades interrompidas por processos de dominação, e que se estenderam às letras, às artes, à produção museológica, arquivística e cultural, e à própria atividade historiográfica.

A rebelião, quando lida como categoria epistemológica, como eixo em torno do qual é possível pensar a sociedade, seu tempo, suas conexões e contradições, torna-se então algo mais do que um evento circunscrito: é uma forma de pensar o mundo a partir de suas fraturas. E é precisamente nessas fraturas que se insurgem figuras quase sempre ligadas a uma cosmologia muito própria, sempre diversa da cosmologia daqueles contra quem se rebelam, oferecendo outras chaves de compreensão do mundo, outros modos de habitá-lo, outras formas de vincular o tempo e espaço, de fundar legitimidades locais. Essas cosmologias periféricas, excêntricas e insurgentes não cabem nos marcos que definem o que é poder e soberania na modernidade, nem nas gramáticas políticas do liberalismo ou do marxismo clássico: elas operam segundo outras lógicas, outros ritmos, outros princípios de vida e de justiça. Por isso, buscar escutar essas vozes, seja nos Andes, nos Bálcãs, nas ilhas do Egeu ou nas florestas amazônicas, é mais do que uma metodologia ou ato hermenêutico. É um exercício radical de reorientação epistemológica, um convite a reencantar e repovoar a história com os mundos que ela tentou expulsar de si. É, em última instância, a possibilidade de imaginar que a história ainda pode ser outra.

5. História e narrativa: poder, ideologia e enquadramentos epistemológicos

Essa abertura, entendida como a possibilidade de viver outras histórias, não acontece no vazio. Ela depende de como a própria história é escrita, arquivada e transmitida. O exercício de pensar contrafactualmente a partir da provocação “e se os derrotados fossem os vencedores?”, talvez nos mostre, novamente, o quanto a narrativa histórica é moldada por escolhas, enquadramentos e silêncios. Cada rebelião nos retorna como ferida aberta e nos obriga não apenas a reimaginar destinos interrompidos, mas também a interrogar os regimes de escrita que tentaram fixar esses acontecimentos em categorias específicas e limitadas, enquadrando seus protagonistas como os perdedores num enredo centrado nos impérios.

Esse jogo entre possibilidades históricas e sua fixação em narrativas encontra expressão também em monumentos e representações cívicas e públicas. Peça intencionalmente chocante e realista, o monumento na praça principal da pequena Tarabuco, no Departamento de Chuquisaca, Bolívia, presta homenagem à participação de populações locais na Batalha de Jumbate (março de 1816), em que os Yamparáez derrotaram tropas espanholas no contexto das guerras pela independência. A escultura apresenta um guerreiro yamparáez segurando o coração de um soldado espanhol, num gesto explícito e visceral, reforçando a memória da vitória e da resistência, enquanto o soldado jaz morto sob sua alparcata. É impossível dissociar a escrita da história dos enquadramentos ideológicos daqueles que escrevem. Toda narrativa incorpora, simultaneamente, convenções discursivas, códigos culturais compartilhados e inflexões conjunturais específicas, sempre atravessadas por ideologias, mitologias políticas, influências religiosas e representações coletivas sobre um mundo em constante transformação. Esse mundo, acelerado e tecnologicamente interconectado, continua sendo moldado por dinâmicas que distribuem o poder de formas profundamente desiguais, a partir do binarismo centro-periferia, no qual a herança imperialista e a persistência de estruturas coloniais seguem permitindo que determinadas nações, grupos, instituições e pessoas explorem e subordinem outros.

Escrever a história, como lembra Michel de Certeau, é sempre uma atividade localizada, marcada por escolhas que produzem um lugar para o historiador, por operações que selecionam e organizam, instituindo ausências tanto quanto presenças. A narrativa histórica não apenas relata fatos e dados, mas os organiza dentro de convenções discursivas e códigos culturais, definindo quais experiências serão lembradas e quais serão esquecidas (Certeau, 1975) . Escrever a história, nesse contexto, não é uma atividade neutra nem inocente: participa de uma disputa simbólica por legitimidade, pertencimento e memória (Trouillot, 1996). Envolve, de um lado, seus agentes, aqueles que escrevem, e, de outro, seus pacientes, aqueles sobre os quais se escreve, e, nas suas lacunas e silêncios, uma galeria de espectros esquecidos. Escrever sobre o passado é sempre, ao mesmo tempo, intervir nos sentidos do presente, abrindo ou restringindo as possibilidades de futuro .

Túpac Amaru, Túpac Katari e os rebeldes andinos não escapam à lógica de produção histórica e reprodução simbólica que atravessa a atividade historiográfica. Em primeiro lugar, eles não estreiam simultaneamente na historiografia, ainda que sua historicidade comece a ser moldada desde, pelo menos, a década de 1830, quando Juan María Gutiérrez encomenda ao historiador napolitano Pedro de Angelis a publicação de uma coletânea documental sobre a rebelião de Túpac Amaru, no âmbito da Colección de Obras y Documentos relativos a la Historia Antigua y Moderna de las Provincias del Río de la Plata, publicada em Buenos Aires, em 1836. Ali delineia-se o contorno de um conflito interpretativo que persiste até hoje: de um lado, a valorização documental do “indígena”, que alimentou verdadeiros nacionalismos arquivísticos e metodológicos; de outro, os juízos moralizantes que impregnavam os tratados históricos, como a qualificação de Túpac Amaru como “um irascível cacique indígena” (De Angelis, 1836).

No Brasil, de forma análoga, Varnhagen, que chegara a flertar com o romantismo indianista no início de sua carreira, chega a conclusões amarguradas e “magoadas” após uma excursão ao sul do país em 1840, ocasião na qual teve contato com o que chamou de “índios bravos”, que interromperam sua caravana e o mantiveram sob a mira de flechas:

Confesso que desde então uma profunda mágoa e até um certo vexame se apoderou de mim, ao considerar que, apesar de ter o Brasil um governo regular, em tantos lugares do seu território achavam-se (e acham-se ainda) um grande número de cidadãos brasileiros à mercê de semelhantes cáfilas de canibais...

Aqui e ali emergem frases saturadas de mágoa, racismo ou paternalismo, escritas em grande parte por intelectuais europeus a serviço da construção de narrativas nacionais. É o caso de De Angelis, funcionário do governo Rosas, cuja obra desqualificou amplamente os atos políticos de Amaru, obscurecendo o vigor da rebelião que ele protagonizara. No século XX, a historiografia latino-americana, sobretudo a peruana e a boliviana, retorna de modo incessante ao tema das rebeliões, especialmente a partir da década de 1940, quando diferentes apropriações (marxistas, indianistas, nacionalistas e populistas) ganharam fôlego em diversos contextos. A confluência dessas leituras transformou os antigos “caudilhos indígenas” em heróis fundacionais de várias nações sul-americanas, como mostram os trabalhos de Jorge Basadre, Alberto Flores Galindo, Pablo Macera, Néstor Taboada Terán e outros. Entretanto, mesmo diante da revalorização simbólica promovida por setores progressistas da intelectualidade, persiste, de modo subterrâneo ou explícito, a velha noção da ilegitimidade da rebelião e da necessidade de tutelar, vigiar ou silenciar seus protagonistas. Esse resíduo ideológico, que atravessa livros didáticos, editoriais da grande imprensa e discursos parlamentares, faz parte da herança do elitismo imperialista: escravocrata, terratenente e capitalista, reciclado e reencenado por elites que souberam atualizar seus mecanismos de dominação no interior das estruturas republicanas pós-independência.

Trata-se de uma herança que também se dissemina na cultura popular e no imaginário social por meio de estereótipos duradouros: o endógeno como essencialmente indisciplinado e indolente, inapto ao trabalho regular, impermeável à moral social, frequentemente alterado e propenso à violência. Esse conjunto de ideias, muitas vezes mal assumidas, mas amplamente presentes em discursos políticos e jornalísticos, expressões culturais e crenças do senso comum, atua como um dos mais potentes operadores simbólicos do imperialismo. Esvaziando o sentido das histórias e das culturas locais, essas narrativas amplas contribuíram para naturalizar a velha gramática imperial da inferiorização dos povos indígenas, agora reencenada em vocabulário contemporâneo. Carmen Bernand (2009) demonstra como a historiografia europeia dos séculos XVIII e XIX, ao formular uma História Universal, marginalizou a América Ibérica, subordinando-a a uma narrativa centrada na civilização europeia. A despeito de produções historiográficas notáveis por autores como Clavijero, que procuravam reivindicar uma visão histórica autóctone, suas ideias foram amplamente desconsideradas pela historiografia universal dominante, como havia sido desconsiderado já no século XVI Garcilaso de la Vega, o primeiro mestiço letrado da América, cujos escritos articulavam sua memória de filho de uma indígena da alta nobreza incaica e de um pai “conquistador” espanhol. Suas tentativas de ascender socialmente na Espanha foram frustradas pela pouca consideração que lhe dedicaram. Embora seja um dos grandes representantes do humanismo renascentista, sua condição de mestiço sistematicamente o colocou no lugar do exotismo, da curiosidade e da exceção.

Os estudos sobre rebeldias e rebeliões, nesse sentido, constituem um campo fértil de disputa simbólica, narrativa e política. A reinterpretação de guerras e rebeliões indígenas não se limita ao passado colonial: diz respeito, sobretudo, aos usos do passado no presente e aos horizontes de futuro que esses usos tornam possíveis ou inviáveis. Como argumenta Hayden White (1973), a escrita da história não é um mero registro factual: é fundamentalmente uma forma de imposição narrativa. Todo historiador, ao escrever seu texto, faz escolhas formais que definem o enredo, os modos de explicação e a orientação moral da narrativa. Nesse sentido, a história não é um discurso neutro, mas uma prática cultural atravessada por códigos literários, convenções de linguagem e posicionamentos ideológicos. Escrever história é, portanto, assumir uma posição ética e política diante do mundo, participar de disputas simbólicas e projetar sentidos que incidem tanto sobre a interpretação do passado quanto sobre as possibilidades de futuro. Escrever sobre Túpac Amaru ou Túpac Katari significa confrontar o dilema historiográfico de reproduzir lógicas de tutela e de silenciamento ou, em oposição, afirmar com radicalidade o protagonismo indígena inscrito na longa duração da resistência anti-imperialista. Trata-se de uma resistência que se desenrola nas margens dos grandes impérios globais, como o espanhol e o otomano, influindo no seu esfacelamento entre o final do século XVIII e primeiras décadas do século XIX. Mais uma vez, a Grécia pode refletir a América Latina e vice-versa.

6. O contrafactual como crítica: possibilidades abortadas e futuros não realizados

Muitas vezes a história contrafactual se alimenta da ficção histórica e até da distopia literária, estabelecendo inusitados diálogos com estudos de folclore e memória, trauma e identidade, hierarquias sociais e exclusão, explorando narrativas de perda, de utopias fracassadas e de caminhos não trilhados. Alison Spedding realiza esse exercício de forma criativa e profunda em seu livro De cuando en cuando Saturnina: Una historia oral del futuro. Ambientado em um futuro pós-apocalíptico na região andina, renomeada como Qullasuyu Marka (antigo território da Bolívia), a protagonista Saturnina Mamani Guarache (Satuka), líder do movimento anarco-feminista-indianista Comando Flora Tristán, conduz ações de resistência e ataque rebelde contra a persistência de estruturas coloniais e patriarcais. Spedding entrelaça elementos indígenas andinos com visões futuristas e tecnológicas, realizando uma crítica incisiva à concepção ocidental e linear da história, sugerindo que a história se move numa temporalidade múltipla, valorizando a oralidade e as tradições locais. As falas de seus personagens são cheias de nuances e referências a fatos da cultura popular boliviana, de sua cultura histórica e literária, mas também de falas que estão na memória dos cocaleiros, dos boêmios e mineiros. Trata-se de um diálogo sensível entre ancestralidade e modernidade, contando de forma bem-humorada histórias possíveis e projetando futuros ancestrais alternativos, em que identidades indígenas e femininas protagonizam novas utopias e novos mundos políticos e sociais.

Essa articulação entre passado e futuro, memória e ficção, utopia e insurreição revela o potencial crítico da história contrafactual como ferramenta de imaginação política. Ao reconstituir mundos que poderiam ter existido, esses exercícios não apenas desestabilizam o monopólio narrativo das potências vencedoras, como também deslocam o olhar historiográfico para os projetos derrotados, deslegitimados ou silenciados. É nesse horizonte que surgem perguntas incômodas, mas historicamente férteis, capazes de desestabilizar o pacto historiográfico moderno e de desafiar suas hierarquias de verossimilhança. As perguntas “e se o império bizantino tivesse vencido o otomano?”, ou “e se os indígenas tivessem vencido os espanhóis?” não devem ser descartadas como mero exercício de especulação. Elas se inserem numa linhagem de reflexões contrafactuais que, longe de relativizarem o passado, têm buscado interrogar as possibilidades abortadas pela violência imperial. Como lembram autores como Enzo Traverso (2009), Quentin Deluermoz e Pierre Singaravélou (2017), a história contrafactual pode operar como um dispositivo heurístico para iluminar os silêncios do passado, problematizar os consensos historiográficos e reinscrever a experiência dos vencidos no campo do possível. Nesse sentido, perguntar-se sobre a vitória dos gregos bizantinos ou dos incas e astecas é também afirmar a legitimidade histórica de seus projetos de civilização, reconhecer sua racionalidade política e disputar os enquadramentos teóricos e epistemológicos que os reduziram ao arcaico, ao irracional ou ao exótico.

No caso americano, a historiografia da rebelião de 1780–1781, tal como foi construída nas repúblicas latino-americanas do século XIX, operou majoritariamente no sentido de desativar sua potência disruptiva, desassociando o ato rebelde do ato político. Essa separação partia da premissa segundo a qual os indígenas seriam inaptos para a política e, por isso, deveriam ser tutelados. Ao mesmo tempo em que os novos Estados-nação evocavam Túpac Amaru como figura simbólica da “raça”, do “povo” ou da “pátria”, apagavam de sua memória política a complexidade das alianças interétnicas, os significados escatológicos da rebelião, a organização militar das tropas, o protagonismo feminino e a cosmologia que a sustentava. Os rebeldes foram convertidos em alegorias. E, embora hoje seus nomes figurem em escolas, monumentos, ruas e praças públicas, não parecem ser reconhecidos como sujeitos políticos plenos, portadores de um projeto alternativo de mundo. Persistem como resquícios e fantasmas de utopias passadas, fragmentos de um futuro que não se realizou e que, para muitos, tornou-se irrecuperável. Teria a “utopia andina” retornado apenas como paródia? Uma farsa melancólica, eco distorcido de um passado rebelde, agora domesticado e convertido em encenação institucional?

Em contraste, a trajetória dos rebeldes kleftes gregos, que lutaram pela independência da Grécia frente ao Império Otomano, revela um processo de heroificação institucionalizada, no qual antigos guerrilheiros de origem camponesa e marginal, como Theodoros Kolokotronis ou Markos Botsaris, foram elevados ao panteão nacional e incorporados à administração da nova república helênica. A transição da rebeldia para a soberania foi, nesse caso, parcialmente bem-sucedida, ainda que também envolta em mitificações e apagamentos. O movimento por eles liderado entra, finalmente, para a história como a Revolução Grega. A memória dos kleftes, reconfigurada por poetas românticos e historiadores do século XIX, serviu para forjar uma continuidade simbólica entre a resistência ao império otomano e a modernidade europeia, operação que consolidou a Grécia moderna como herdeira legítima da Antiguidade Clássica.

Na América, a transição da condição de colônias de impérios europeus à de repúblicas independentes se deu por via oposta: o indígena foi objeto de tutela, não de consagração. Seus projetos políticos foram reescritos como “excesso”, como clara ameaça à ordem e à civilização e, mesmo quando finalmente reconhecidos, suscitaram discussões cercadas por ambivalência. O indígena foi simultaneamente necessário e indesejável para os projetos nacionais latino-americanos: necessário como símbolo originário de nações possíveis, como elo com uma natureza idealizada que, em muitos discursos, evocava uma Arcádia primordial, mas indesejável como sujeito político ativo. Essa ambivalência produziu um campo de memória truncado, no qual o reconhecimento simbólico não implicou reparação histórica, tampouco integração efetiva (Postero e Zamosc, 2004; Bonfil Batalla, 1996; Burgos, 1996; Quijano, 2017).

7. Brechas insurgentes: história inacabada e futuros ancestrais

Reabrir, portanto, a possibilidade do “e se?” está longe de ser um gesto escapista: inscreve-se num movimento historiográfico crítico e ético, que nos abre novas perspectivas para repensar os fundamentos da ordem imperial e imaginar outros caminhos possíveis para os usos do passado, para o convívio no presente e para a delineação de futuros. A rebeldia indígena, vista sob essa lente, não se esgota em sua derrota militar. Ela se projeta como horizonte de possibilidade não realizado, como matriz de uma soberania insurgente ainda por vir. Pensar com as rebeldias e as rebeliões, e não apenas sobre elas, é também resgatar suas cosmologias, seus símbolos, seus modos próprios de pensar e instituir a justiça, de perceber a liberdade e de se reinscrever no tempo.

Neste sentido, o exercício comparativo com os kleftes e suas narrativas de resistência, transfiguração nacional e reapropriação mítica pode iluminar formas distintas de incorporação, ou de apagamento, da rebeldia popular em sociedades pós-coloniais latino-americanas. Também nos serve de alerta para os riscos da museificação: quando a rebeldia vira mito e institucionaliza-se, dilui-se seu potencial de interrogar o presente. Por isso, é preciso manter abertas as brechas da história, onde vozes silenciadas, caminhos não trilhados e futuros adiados ainda podem ser escutados e reivindicados. Diante disso, a historiografia já há algumas décadas demonstra que se tornou cada vez mais imprescindível que a escrita da história se abrisse a uma escuta atenta de passados silenciados, aquelas vozes que não apenas desafiaram as estruturas imperiais de seu tempo, mas que continuam, até hoje, a interpelar os alicerces epistemológicos do narrar e do fazer historiográfico. Reinscrever Túpac Amaru e os rebeldes andinos no campo do possível, e não apenas no do passado “vencido”, exige recusar as formas de domesticação simbólica operadas pela historiografia tradicional e pelos aparatos memorialísticos do Estado-nação. Comparar sua trajetória com a dos kleftes gregos nos abre diálogos que buscam reconhecer tanto os mecanismos de canonização e apagamento quanto as possibilidades de subversão literária dessas mesmas narrativas. A história, afinal, não é nem apenas o que aconteceu “wie es eigentlich gewesen ist”, como de fato foi, nem apenas o registro do que aconteceu, mas, fundamentalmente, o próprio terreno, em constante disputa, onde se decide o que pode ou não ser lembrado, legitimado, projetado.

Por toda parte pulsam histórias que ainda não terminaram, que ainda se desenrolam. Histórias em que os vencidos reclamam outra forma de existir no tempo, que não seja como notas de rodapé, mas como protagonistas de um mundo que ainda pode ser outro. Mais uma vez afirmamos que a história, como as ciências, as artes e as linguagens humanas, se inscreve dentro de panoramas ideológicos, esteja ou não plenamente consciente disso o historiador que efetivamente a escreve. Escutar as ruínas, como propõe a poesia de Seferis, pode finalmente significar reabrir a história para o inacabado, e assim podemos conectar América Latina e Grécia, não em busca de simetrias e semelhanças, mas fundamentalmente das brechas onde vozes esquecidas e histórias silenciadas ainda estão latentes. Nesse espelho, Túpac Amaru e os kleftes não habitam somente o passado: eles encarnam possibilidades negadas, regimes temporais apagados, mundos e cosmologias soterrados. Por isso, é preciso escrever a partir dessas brechas: não para preencher o vazio com nostalgia e projeções afetivas e atávicas, mas para cultivá-lo como campo fértil de imaginação política, vigor cultural e impulso ontológico. Entre as pedras de Sacsayhuamán e as de Micenas, entre o navio AGONIA 937 e as caravanas de “condenados à morte precoce” que descem dos altiplanos, entre os mortos e os vivos, pulsam futuros ancestrais e insurgentes, feitos de escuta, memória e insubmissão.

Anexo

À maneira de G. S.

Aonde quer que eu viaje, a Grécia me fere.

No Pélion, entre castanheiros, a camisa do Centauro

deslizava entre as folhas para envolver meu corpo

enquanto eu subia a ladeira e o mar me acompanhava,

subindo também como o mercúrio de um termômetro,

até encontrarmos as águas da montanha.

Em Santorini, tocando ilhas que afundavam,

ouvindo soar uma flauta entre as pedras-pomes,

uma flecha me cravou a mão na amurada

disparada subitamente

dos confins de uma juventude já declinada.

Em Micenas, ergui as grandes pedras e os tesouros dos Atridas

e deitei-me com eles no hotel da “Bela Helena de Menelau”;

desapareceram apenas na aurora, quando Cassandra cantou

com um galo pendurado em seu pescoço negro.

Em Spetses, em Poros e em Mykonos

me adoeceram os barqueiros.

O que querem todos esses que dizem

estar em Atenas ou no Pireu?

Um vem de Salamina e pergunta ao outro se “vem da Praça Omonia”.

“Não, venho da Praça Syndagma”, responde, satisfeito,

“encontrei Yannis e ele me ofereceu um sorvete.”

Enquanto isso, a Grécia viaja.

Nada sabemos, nada sabemos

não sabemos que estamos todos desembarcados;

não conhecemos a amargura do porto

quando partem todos os navios;

zombamos daqueles que a sentem.

Um mundo estranho este que diz estar na Ática

e não está em parte alguma;

compram amêndoas açucaradas para se casar,

guardam mechas de cabelo como amuletos, tiram fotografias;

o homem que vi hoje sentado diante de um fundo com pombos e flores

deixava a mão do velho fotógrafo alisar suas rugas,

marcas deixadas no rosto

por todas as aves do céu.

Enquanto isso, a Grécia viaja; viaja sem cessar.

E se “vemos florir o mar Egeu de cadáveres”

são aqueles que tentaram alcançar o grande navio nadando,

os que se cansaram de esperar por navios que jamais partem:

o ELSI, o SAMOTHRÁKI, o AMBRAKIKÓ.

Os navios apitam agora, ao anoitecer, no Pireu;

apitam sem parar, apitam,

mas nenhum estivador se move,

nenhuma corrente brilha molhada

sob a última luz que se extingue;

o capitão permanece petrificado, entre branco e dourado.

Aonde quer que eu viaje, a Grécia me fere:

cortinas de montanhas, arquipélagos, granitos nus…

O navio que navega se chama AGONIA 937.

Navio a vapor Ávlis, à espera de partir.

Verão de 1936.

Giorgos Seferis. Poemas (ed. grega). Atenas: editora Íkaros, 1985 .

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