
Histórias Insurgentes
Pesquisas sobre rebeldias, insurgências e futuros ancestrais
Me chamo Alexandre Belmonte e este é meu site profissional. Sou professor de História da América na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde desenvolvo pesquisas sobre rebeliões indígenas, arquivos coloniais e epistemologias periféricas. Nos últimos anos, tenho me dedicado à análise comparada entre os mundos indígena e mediterrâneo, investigando conexões entre insurgências, cosmologias, regimes de memória e modos de escrever a história

Montanhas Insurgentes
Pesquisas sobre revoltas e práticas de resistência,
em perspectiva comparada: Andes e Mediterrâneo


Estamos tão habituados à onipresença de uma história narrada a partir da perspectiva dos impérios europeus que, com frequência, deixamos de perceber a existência de múltiplas outras experiências históricas – distintas em suas naturezas, formas e expressões – que se desenrolaram, e continuam a se desenrolar, em diferentes partes do mundo.
Entre 1780 e 1781, enquanto grupos indígenas nos Andes, liderados por Túpac Amaru II e Túpac Katari, sitiavam cidades estratégicas e confrontavam a ordem colonial espanhola, nos Bálcãs, homens classificados como “bandidos” pelas autoridades otomanas resistiam ao domínio imperial por meio de táticas de guerrilha, redes de solidariedade e formas comunitárias de organização local. A simultaneidade dessas insurgências, geograficamente distantes mas estruturalmente comparáveis, nos convoca a dois gestos fundamentais: por um lado, retomar criticamente o lugar da rebelião na história humana – sua ubiquidade, sua potência simbólica, sua capacidade de reconfigurar a ordem – por outro, deslocar o eixo da análise histórica para além do horizonte eurocentrado, explorando geografias insurgentes e epistemologias periféricas que desafiam, por dentro e por fora, o monopólio imperial da narrativa e do sentido.
A vertiginosa expansão de acervos digitais, a multiplicação de bases de dados acessíveis, os repositórios audiovisuais e as redes de intercâmbio intelectual descentralizadas tornaram possível, de forma inédita, repensar a história global a partir de múltiplos pontos de enunciação. Como afirmou Carmen Bernand em sua conferência no Rio de Janeiro, em março de 2025, vivemos hoje novamente uma brecha no tempo. Entre os séculos XV e XVI, a invenção da imprensa, as grandes navegações, os chamados “descobrimentos”, as guerras de religião, o humanismo renascentista e os primeiros gestos de sistematização científica representaram um momento de suspensão e rearranjo do mundo conhecido. Um momento de abertura.
A publicação do Livre des vrais portraits des hommes illustres, em 1584, por André Thevet, inscreve-se nesse horizonte de inquietação e abertura que marcou os séculos XV e XVI. Fruto de uma era de deslocamentos físicos e epistemológicos, sua obra se propunha a reunir, por meio de textos e imagens (geralmente gravuras de Theodore de Bry), um vasto repertório de figuras célebres de diferentes épocas e geografias, projetando um panteão de personagens e diluindo fronteiras entre antiguidade e modernidade, entre centro e periferia, entre o familiar e o exótico. Ao lado de imperadores romanos e reis cristãos, Thevet inclui retratos de sultões otomanos, magos persas, monarcas africanos, indígenas tupinambás e até sábios mouros convertidos, como Jean Léon l’Africain. Essa galeria de “homens ilustres” reflete a ambição enciclopédica do cosmógrafo francês, ao mesmo tempo em que revela as fraturas e fascínios de uma cristandade em expansão, confrontada com o desafio de compreender, representar e domesticar a alteridade em escala global. Nesse gesto, esboça-se uma história-mundo avant la lettre, ainda presa a categorias morais e teológicas, mas já movida por uma curiosidade radical diante do outro.
Mas aquela brecha inicial logo se fechou sob o peso do colonialismo moderno, das guerras de conquista e da escravização em massa de povos africanos e indígenas americanos. Epistemologias e ontologias dos colonizados foram silenciadas, apagadas ou convertidas, de forma violenta, em ornamentos exóticos que serviram para alimentar o fascínio europeu pela alteridade subordinada e domesticada. Em seu lugar, produziram-se estereótipos duradouros, hierarquizações culturais disfarçadas de ciência, discursos de superioridade racial e imaginários civilizatórios que legitimaram a pilhagem e a exploração. O resultado foi devastador: genocídios, catástrofes ecológicas, desestruturações sociais e feridas históricas que seguem abertas nas sociedades pós-coloniais – sociedades que ainda hoje se equilibram precariamente sobre fraturas raciais, ambientais e epistêmicas.
A possibilidade de uma abertura ontológica ao outro – possibilidade que, em outros tempos, produzira verdadeiros best-sellers, como Histoire d’un voyage à la terre du Brésil de Jean de Léry e a Cosmographie universelle de André Thevet – foi progressivamente absorvida por um regime normativo e eurocêntrico, que instituiu uma concepção hegemônica de história, humanidade e civilização. Essa perspectiva, impulsada pelo colonialismo e extrativismo brutal, reduziu a complexidade das trajetórias humanas a uma narrativa linear, cujo ponto de partida e de chegada era a Europa, relegando as demais experiências históricas à condição de anacronismo, marginalidade ou curiosidade exótica. Foi um movimento que não cessou de se repetir. A construção da História Universal europeia entre os séculos XVIII e XIX invisibilizou as experiências da América Hispânica e consolidou uma narrativa excludente, fundada em pressupostos racializados e geopolíticos (Bernand, 2009). Conforme Bernand, o discurso iluminista, ainda que travestido de cosmopolitismo, operava por meio de categorias que hierarquizavam os povos segundo climas, costumes e graus de “civilização”. Nesse quadro, a Espanha foi desqualificada como ator histórico e, por extensão, suas colônias foram vistas como territórios marcados pelo atraso e pela estagnação. Mesmo os esforços notáveis de pensadores crioulos, como Francisco Javier Clavijero e Juan de Velasco, que buscaram demonstrar a complexidade social, política e simbólica das civilizações indígenas, foram sistematicamente ignorados pelos paradigmas historiográficos europeus. Elementos como os calendários cerimoniais, os códices pictográficos e as esculturas religiosas mesoamericanas, longe de serem reconhecidos como expressões legítimas de um saber cosmológico próprio, foram interpretados como sinais de primitivismo ou exotismo irredutível. Em vez de integrarem esses testemunhos à narrativa universal da humanidade, os historiadores europeus os utilizaram como prova da suposta inferioridade estética, moral e intelectual dos povos americanos.
Dessa forma, a América foi mais uma vez empurrada para uma posição de alteridade absoluta – não como uma diferença a ser acolhida, mas como uma singularidade que justificava sua exclusão. Antes deles, já havia sido desprezado o Inca Garcilaso de la Vega, cronista mestiço do século XVI que, nos Comentarios Reales, reivindicou a dignidade dos incas e de sua civilização, propondo um relato híbrido e autobiográfico da história andina. Embora dotado de notável erudição humanista e domínio estilístico da língua castelhana, Garcilaso foi frequentemente marginalizado ou mal interpretado pelas leituras europeias, que projetaram sobre sua obra a ambiguidade do título – ora como comentário “da realeza”, ora como comentário “verdadeiro” – mas desconsideraram sua tentativa de inscrever o passado indígena nos quadros de uma história universal. Sua mestiçagem, assumida “a boca cheia”, representava tanto um lugar de enunciação quanto um projeto epistemológico, capaz de desafiar as dicotomias entre civilizado e bárbaro, tradição e modernidade, vencido e conquistador.
Hoje, no entanto, nas bordas dos antigos impérios e diante da potência transformadora dos arquivos digitais, dos repositórios abertos, das redes de intercâmbio acadêmico descentralizadas, uma nova brecha se esboça no tecido do tempo histórico. Vivemos um momento em que as margens, outrora silenciadas ou folclorizadas, voltam a falar com intensidade renovada. Seus enunciados não emergem de centros hegemônicos, mas se insinuam nas fissuras do sistema, nos interstícios onde a norma hesita e onde a linearidade do progresso tropeça. Falam com a voz das ilhas, dos desertos e das florestas; com a memória dos que foram historicamente expropriados de sua própria temporalidade. Esses efeitos, como sempre, se fazem sentir primeiro nas zonas liminares: nas fendas, nos sertões, nos estuários – territórios fronteiriços em que a geografia resiste à domesticação e a experiência histórica escapa às categorias rígidas do arquivo ocidental. Ali onde antes só se reconheciam ausências, agora pulsam registros, insurgências, cosmologias, epistemologias noturnas, subterrâneas. Ribeirinhos caminham hoje sobre os leitos secos do rio Amazonas, com baldes, cacimbas e esperança, em busca da água que já não brota – metáfora encarnada de um mundo em colapso, mas também de uma persistência que se recusa a desaparecer. A história voltou a ruir onde sempre foi saqueada. Mas, dessa vez, a ruína não é apenas destruição: é também nova abertura, reconfiguração, possibilidade de refundação crítica do que entendemos por história, por humanidade e por futuro.
Repensar a história a partir das margens é mais que um gesto acadêmico: é uma urgência política, ética e ecológica. É reencontrar as vozes soterradas sob as ruínas da acumulação e escavar outras possibilidades de existência e de sentido. Isso exige, entre outras coisas, renunciar aos nacionalismos metodológicos, arquivísticos e, sobretudo, epistemológicos, que continuam a informar boa parte das narrativas historiográficas. Não se trata apenas de incluir novas vozes, mas de deslocar os próprios eixos da análise, de acolher noções forjadas a partir de outros ethos e logos – e páthos – que não os do imperialismo europeu. Assim talvez seja possível articular uma história global verdadeiramente plural, atenta às multiplicidades da experiência humana e às cosmopolíticas que desafiam a universalização do pensamento ocidental.
Neste projeto, propõe-se justamente o exame de dois focos insurgentes que, embora geograficamente distantes – os rebeldes indígenas andinos e os kleftes gregos – revelam ressonâncias estruturais na maneira como contestaram o poder imperial, mobilizaram símbolos religiosos, articularam memórias orais e acionaram formas próprias de organização política e justiça popular.
No entanto, ao revisitarmos essas insurgências, é preciso estar atento às armadilhas das narrativas nacionalistas que, frequentemente, têm se apropriado dessas figuras para fins ideológicos. No caso dos Andes, é comum que Túpac Amaru II, Túpac Katari e os rebeldes de Chayanta sejam celebrados sob uma chave de nacionalismo de esquerda, como em certas leituras promovidas por movimentos políticos contemporâneos, notadamente pelo MAS (Movimiento al Socialismo). Essa apropriação atual, contudo, não se dá no vazio: ela ecoa camadas profundas de significados culturais já presentes no interior das próprias rebeliões. Em pesquisas anteriores, evidenciamos como determinados traços desses levantes mobilizaram aspectos primordialmente simbólicos e religiosos entre os grupos envolvidos. Dentre esses aspectos, destacou-se a apropriação de um léxico inquisitorial nos processos contra indígenas “rebeldes” e, sobretudo, a disseminação de expectativas messiânicas e milenaristas em torno das figuras de Túpac Katari e Túpac Amaru, centradas na narrativa do Inkarrí. Sugerimos, então, que o messianismo andino constituiu-se como uma pauta cultural híbrida, articulando elementos cristãos e uma cosmovisão andina de raízes pré-coloniais (Belmonte, 2018a; 2019a). O retorno de Túpac Amaru - a “suprema serpente” que conecta, como réptil sagrado, o ukhu pacha (mundo inferior) ao kay pacha (mundo visível) - anunciava o pachakuti, o cataclismo regenerador que destrói e renova, reparando o caos imperante (Pease, 1977; Hidalgo Lehuedé, 1982).
Situar as rebeliões tupamaristas e kataristas nesse ambiente simbólico foi crucial para compreendê-las como fenômenos interconectados e de longa duração, com projeções que chegam aos séculos XX e XXI, momento que Xavier Albó denominou de “retorno do índio” (Albó, 1991). A persistência de ideias messiânicas vinculadas à serpente (amaru em quíchua, katari em aimará) torna-se evidente no contexto cultural da década de 1770, como demonstraram Hidalgo Lehuedé, Sinclair Thomson e Franklin Pease, mas também nas ressignificações contemporâneas de uma “esperança redentora”. Essa ressignificação é visível, por exemplo, no governo de Evo Morales, com a promulgação de políticas públicas voltadas à inclusão social e ao reconhecimento do protagonismo indígena e mestiço na história da Bolívia. Não é casual que o Ministério de Trabajo, Empleo y Previsión Social tenha reeditado, em 2016, a obra de Mercedes López-Baralt El retorno del Inca Rey, cujo prefácio apresenta Evo Morales como a reencarnação simbólica do Inkarrí. Em uma das fotografias da edição, Morales aparece com indumentária e coroa incaica, ao lado da afirmação: “es posible advertir que el pueblo comunario comienza a reconocer en el Presidente Evo Morales al Inkarí […] el Presidente se ha convertido en el líder indiscutible que genera la unidad de todo el pueblo […] luchando por la soberanía y la dignidad nacional como jamás antes nadie lo había hecho” (López-Baralt, 2016).








Na Grécia, por outro lado, a celebração dos kleftes tem sido frequentemente apropriada por discursos nacionalistas de direita e extrema-direita, que os consagram como heróis fundadores da nação, enfatizando sua bravura, seu amor à liberdade e seu papel na luta contra o domínio otomano. Essa apropriação ideológica dos kleftes desloca o foco de sua condição marginal, ambígua e contra-hegemônica, esvaziando as dimensões populares, locais e mesmo subversivas de sua atuação, em favor de uma leitura épica e heroica da história nacional. Diversos estudiosos têm chamado atenção para os riscos dessa construção “mitológica”. Michael Herzfeld (1982), por exemplo, analisa como o folclore grego foi sistematicamente mobilizado para reforçar uma identidade nacional homogênea, apagando contradições internas e complexidades regionais. De modo semelhante, Stathis Gourgouris (1996) demonstra como a própria fundação da Grécia moderna implicou a assimilação de figuras liminares, como os kleftes, a um imaginário nacional contínuo e idealizado, moldado pelo Iluminismo europeu e pelo filo-helenismo romântico. Enquanto no mundo andino insurgências indígenas têm sido reinterpretadas a partir de uma perspectiva redentora, que destaca a centralidade do indígena como sujeito político ativo (Albó, 1991; López-Baralt, 2016), o caso grego segue uma trajetória quase oposta: tende a obscurecer o caráter plebeu e dissidente dos kleftes, convertendo-os em emblemas de uma continuidade nacional idealizada. Essa divergência aponta para formas distintas de apropriação do passado, nas quais memória popular, identidade coletiva e narrativa histórica são mobilizadas de maneira desigual. A comparação entre essas duas tradições insurgentes - a andina e a grega - evidencia que as lutas pelo sentido do passado se desenrolam em terrenos instáveis, atravessados por disputas políticas, escolhas interpretativas e diferentes critérios de visibilidade. Insurgência e nação, nesses contextos, não caminham necessariamente juntas; ao contrário, são frequentemente tensionadas por projetos que moldam o que pode ser lembrado, celebrado ou silenciado (Hamilakis, 2007).
É justamente no tensionamento desses registros - rebeldia e canonização, resistência local e apropriação nacional, mito popular e silenciamento acadêmico - que se encontra o potencial analítico da comparação proposta. Ao recuperar experiências insurgentes situadas em diferentes coordenadas do globo, este trabalho busca contribuir para o desmonte das epistemologias fundadas no nacionalismo europeu e para a construção de uma história comparada sensível às cosmologias, às linguagens e às práticas de resistência mobilizadas por povos que habitaram - e resistiram - nos interstícios dos impérios. Essa proposta também dialoga com a crítica ao nacionalismo metodológico formulada por Wimmer e Glick Schiller (2002), que chamam atenção para o modo como a historiografia e as ciências sociais frequentemente tratam o Estado-nação como unidade natural de análise, como se toda experiência histórica devesse caber em suas fronteiras e categorias. Esse enquadramento restringe o olhar sobre fenômenos que atravessam ou transbordam as narrativas nacionais. Ao privilegiar formas de insurgência enraizadas em cosmologias locais e práticas populares, este trabalho busca contribuir para uma história comparada que escape dessas limitações e reconheça a pluralidade das experiências históricas.
Estamos nos referindo, talvez, a geografias alternativas de resistência – não apenas práticas, mas também epistêmicas e, por que não dizer, ontológicas. Espaços onde a luta política não se limita à contestação territorial, mas envolve a afirmação de formas singulares de habitar o mundo, de construir relações e de atribuir sentido à vida coletiva. O que aproxima as experiências insurgentes de andinos e kleftes não é apenas a resistência armada a impérios distintos, mas o fato de que ambas emergem de um distanciamento radical em relação ao ethos colonial – precisamente por se enraizarem entre os colonizados, ou entre sujeitos relegados às margens do poder metropolitano.
A montanha, nesses casos, não é apenas refúgio estratégico ou elemento topográfico: é paisagem vivida, território sagrado, eixo de ordenamento simbólico e espaço-tempo da insurgência. Nela se organiza não apenas a tática militar, mas uma ontologia política distinta, que desafia os padrões imperiais de autoridade, escrita, temporalidade e legitimidade. Como demonstram Sherry Ortner (1999) e Yi-Fu Tuan (1977), regiões montanhosas podem se tornar matrizes de sentido, afeição e identidade, funcionando como eixos estruturantes de mundos sociais inteiros. No contexto indígena americano, autores como Gersem Baniwa têm enfatizado que a terra, as florestas e os relevos não são meras paisagens, mas entidades vivas, integradas a um regime cosmológico que articula espaço, memória e política. Nesses contextos, a luta pela terra é indissociável da luta pela existência das próprias cosmologias locais - por suas memórias orais, por seus regimes de verdade e por seus princípios de justiça (Baniwa, 2006).
Termos como lealdade, traição, honra, virilidade e orgulho circulam com frequência nos discursos que configuram o imaginário em torno de figuras insurgentes. Seja nos cantos populares dos kleftes, que exaltam o philotimo - ideal de honra e dignidade pessoal - seja nas narrativas indígenas andinas que evocam o curaca traidor ou o líder martirizado, esses vocabulários mobilizam afetos e valores morais para julgar comportamentos e organizar sentidos coletivos da história. Longe de expressarem apenas tradições locais autônomas, essas categorias também são moldadas por dispositivos coloniais e nacionais que buscaram enquadrar a rebeldia em termos reconhecíveis – e domesticáveis. Ainda assim, essa mesma gramática pode ser apropriada em chave contra-hegemônica, funcionando como mecanismo de memória seletiva e de reinscrição simbólica da dignidade dos vencidos. Trata-se, portanto, de um terreno ambivalente, no qual se cruzam resistência e normatividade, reconhecimento e controle.


Nas brechas da história: rebeldia, silenciamento
e futuros insurgentes entre os Andes e a Grécia
Políticas da memória: rebeliões, arquivos e epistemologias periféricas
Alexandre Belmonte
À maneira de G. S.
Para onde quer que eu viaje, a Grécia me fere.
No Pélion, entre castanheiros, a camisa do Centauro
deslizava entre as folhas para envolver meu corpo
enquanto eu subia a ladeira e o mar me acompanhava,
subindo também como o mercúrio de um termômetro,
até encontrarmos as águas da montanha.
Em Santorini, tocando ilhas que afundavam,
ouvindo soar uma flauta entre as pedras-pomes,
uma flecha me cravou a mão na amurada —
disparada subitamente
dos confins de uma juventude já declinada.
Em Micenas, ergui as grandes pedras e os tesouros dos Atridas
e deitei-me com eles no hotel da “Bela Helena de Menelau”;
desapareceram apenas na aurora, quando Cassandra cantou
com um galo pendurado em seu pescoço negro.
Em Spetses, em Poros e em Mykonos
me adoeceram os barqueiros.
O que querem todos esses que dizem
estar em Atenas ou no Pireu?
Um vem de Salamina e pergunta ao outro se “vem da Praça Omonia”.
“Não, venho da Praça Syntagma” — responde, satisfeito —
“encontrei Yannis e ele me ofereceu um sorvete.”
Enquanto isso, a Grécia viaja.
Nada sabemos, nada sabemos —
não sabemos que estamos todos desembarcados;
não conhecemos a amargura do porto
quando partem todos os navios;
zombamos daqueles que a sentem.
Um mundo estranho este que diz estar na Ática
e não está em parte alguma;
compram amêndoas açucaradas para se casar,
guardam mechas de cabelo como amuletos, tiram fotografias —
o homem que vi hoje sentado diante de um fundo com pombos e flores
deixava a mão do velho fotógrafo alisar suas rugas,
marcas deixadas no rosto
por todas as aves do céu.
Enquanto isso, a Grécia viaja — viaja sem cessar.
E se “vemos florir o mar Egeu de cadáveres”
são aqueles que tentaram alcançar o grande navio nadando,
os que se cansaram de esperar por navios que jamais partem:
o ELSSI, o SAMOTRÁCIA, o AMVRAKIKÓS.
Os navios apitam agora, ao anoitecer, no Pireu;
apitam sem parar, apitam,
mas nenhum estivador se move,
nenhuma corrente brilha molhada
sob a última luz que se extingue;
o capitão permanece petrificado, em branco e dourado.
Para onde quer que eu viaje, a Grécia me fere:
cortinas de montanhas, arquipélagos, granitos nus…
O navio que navega se chama AGÔNIA 937.
Navio a vapor Ávlis, à espera de partir.
Verão de 1936.
Giorgos Seferis, Poemas, editora Íkaros, 1985.
1. Na abertura de um de seus poemas mais pungentes ‒ “Onde quer que eu vá, a Grécia me fere” (Όπου και να ταξιδέψω η Ελλάδα με πληγώνει) ‒ o escritor e prêmio Nobel grego Giorgos Seferis (1900-1971) condensa a tensão entre identidade nacional e melancolia histórica, tensão que atravessa sua obra por meio de potentes passagens e perplexos questionamentos. A Grécia que o fere não é a da antiguidade gloriosa, mas o fantasma desta: a Grécia das promessas e profecias não cumpridas, a da ruína persistente, a Grécia feita produto de exportação, o destino turístico sonhado, terra de mitos fossilizados, de esperas e esperanças frustradas. Cem anos após a independência grega, já não lhe é possível tecer elogios épicos: restam então os caminhos abertos pelo lamento lírico, elegia atravessada por beleza, inquietação e desencanto.
Como num itinerário fragmentado, o poema se estrutura evocando um caleidoscópio de lugares, sons e símbolos, percorrendo montanhas, ilhas, cidades e portos, revelando o abismo entre um passado monumental e um presente esvaziado de sentidos e vinculações.
“O que querem todos aqueles que dizem
que estão em Atenas ou no Pireu?
Um vem de Salamina e pergunta ao outro se “vem de Omonia”
“Não, venho da Syntagma”, responde, satisfeito:
“Encontrei o Yannis e ele me pagou um sorvete.”
Enquanto isso, a Grécia viaja
não sabemos de nada, não sabemos que todos nós estamos desembarcados,
não conhecemos a amargura do porto quando todos os navios partem;
zombamos daqueles que a sentem.
Mundo estranho, que diz estar na Ática e não está em lugar algum;
compram confeitos para se casar,
levam mechas de salvação, tiram retratos.”
O cotidiano esvaziado de sentido sugere um bando de sonâmbulos numa noite longa e escura, agindo por instinto onírico.
“Os navios apitam agora que anoitece no Pireu –
apitam sem parar, apitam – mas nenhum estivador se move,
nenhuma corrente brilha molhada à luz que se extingue,
o capitão permanece petrificado entre branco e dourado.
Onde quer que eu vá, a Grécia me fere;
cortinas de montanhas, arquipélagos, granitos nus…
O navio que viaja se chama AGONIA 937.”
A imagem final do navio não é mero ornamento estilístico: é metáfora contundente da condição de um povo em contínuo deslocamento, mas sem rumo claro ou promessa de alívio ou retorno. Não há sombra de consciência de sua própria historicidade. Os personagens vivem entre ruínas e simulacros, iludidos por hábitos mecânicos ‒ o sorvete ofertado, a conversa trivial ‒ enquanto a verdadeira Grécia continua a “viajar” (η Ελλάδα ταξιδεύει), uma entidade errante e inquieta. Τη καρδιά μου ταξιδεύεις σ’ άλλοι γη – “transportas meu coração a outras terras”, segundo o verso de uma canção popular na Grécia. Ταξιδεύω (taxidévo) sugere, em sua etimologia, que viajar é também transportar e ser transportado. Há um descompasso entre o que a Grécia transporta, em sua viagem, e para onde é transportada: uma gaiola de narrativas estanques.
Nessa Grécia em trânsito, flutuando entre memória e perda, reflete-se a condição histórica do indígena ‒ ou, mais precisamente, do endógeno. Proponho aqui uma reinterpretação etimológica simbólica do termo “indígena”, não mais a partir de sua raiz latina (de indu + gignere, “gerar dentro”), mas por meio da palavra grega endógeno (ἔνδον (éndon): “dentro, no interior” + γένος (génos): “origem, tipo, espécie”, designando aquele ou aquilo que nasce do interior, que emerge de dentro do genos ‒ linhagem, pertencimento, origem. Tal deslocamento não busca equivalência filológica, mas afirma uma provocação epistêmica: pensar o indígena como aquele que carrega em si a força relacional do lugar, o vínculo originário e persistente com o território, com os mortos, com a terra viva e com os ritmos próprios do mundo. Aquele cuja existência se enraíza em cosmologias de reciprocidade, e que, por isso mesmo, tornou-se alvo de expropriação: primeiro pelo colonialismo imperialista, depois pelo capitalismo, que transformaram o genos em recurso, a paisagem em mercado e o corpo em estatística.
Ser endógeno, nesse sentido, é afirmar um pertencimento insurgente e irredutível, anterior e posterior à usurpação colonial. É inscrever-se no mundo não como propriedade, mas como vínculo ‒ uma relação que resiste à lógica da extração, da desterritorialização e do apagamento simbólico. Contra a ideia de um indígena como figura estática do passado, propõe-se o indígena como sujeito histórico pleno, portador de cosmologias vivas, de práticas políticas autônomas e de futuros ainda por escrever. Estar ou nascer na Grécia, no Peru ou na Bolívia não garantem vínculo com os respectivos legados indígenas, frequentemente reduzidos a marca turística, símbolo exótico ou fórmula folclórica. A autonomia e agência indígena devem sempre estar sob rigorosa vigilância de estruturas mais poderosas, tanto narrativas culturalmente referendadas quanto formas institucionalizadas de controle e hierarquização. A impaciência e irritação de Seferis em relação à banalidade de um cotidiano feito de pessoas inconscientes da própria historicidade que possibilita aquele cotidiano existir se entrelaça, em nossa perspectiva, à crítica indígena à apropriação (pelo mercado, pelos partidos políticos etc.) de símbolos ancestrais, esvaziados de suas cosmologias, de seus sentidos originários – o símbolo máximo disso é o fato de que o indígena não é dono da terra, mas, ao contrário, é a terra que o possui.
Convém sempre lembrar que a apropriação de noções como génos, linhagem ou origem comum já foi historicamente utilizada por ideologias nacionalistas, racistas e totalitárias, com consequências devastadoras. Do fascismo italiano ao nazismo alemão, passando por diversos projetos eugenistas no mundo atlântico e mediterrâneo, a ideia de uma identidade enraizada, associada a uma suposta pureza endógena, foi convertida em fundamento para políticas de exclusão, violência e extermínio. Nossa proposta resgata a noção de endógeno em sentido cosmológico, insurgente e relacional, e não biologizante ou identitário, e assim nos distanciamos radicalmente dessas derivações. O que está em jogo aqui não é a celebração de uma essência imutável, mas a reivindicação de um pertencimento negado, uma reinscrição crítica da existência indígena como relação com a terra, com o tempo e com o coletivo, fora das lógicas de expropriação, folclorização e apagamento. Trata-se, portanto, de deslocar o termo de sua possível carga essencialista para um campo de resistência epistêmica e ontológica, onde “ser de dentro” não implica pureza, mas sim vinculação, historicidade e luta por reexistência.
Assim como Seferis afirma que os gregos modernos estão todos “desembarcados” (είμαστε ξέμπαρκοι όλοι εμείς), privados da âncora simbólica que os ligava a uma continuidade civilizacional, também os indígenas foram progressivamente desaninhados de suas próprias cosmologias. Nem a modernidade os absorveu plenamente, nem suas tradições foram autorizadas a florescer como horizonte político, mas, ao contrário, foram reelaboradas, domesticadas e folclorizadas ao sabor das elites. Desse processo decorreu um regime de esquizofrenia histórica, no qual os vestígios do passado convivem com um presente que, não só não os compreende, mas os instrumentaliza como mitos políticos. De ideologia em ideologia, vão-se distorcendo epistemes e ontologias, e se produzem tantas representações do indígena quantas forem necessárias à sustentação de diferentes projetos políticos e ideológicos. O indígena aí já não é apenas o aborígene latino-americano; é também seu antípoda nos Bálcãs e Grécia insular.
Essa dissociação simbólica nos acompanha desde a raiz da geografia colonial que herdamos. Desde os tratados de Tordesilhas e Saragoça até as encomiendas, mitas e cartografias fantásticas da América “tropical”, o espaço continental foi ordenado a partir de uma lógica que separava o mundo físico do mundo social, a natureza da cultura. Esse binarismo apagou cosmologias locais e naturalizou a violência epistêmica do colonialismo. É uma dissociação própria do colonialismo ibérico. O continente passou a ser representado por estereótipos: montanhas intransponíveis, florestas impenetráveis, civilizações sem história. A geografia moderna, marcada por fronteiras fixas e por uma leitura ocidental da paisagem, suprimiu as redes ancestrais de circulação, os sistemas agrários comunitários, os caminhos sagrados e os modos indígenas de orientação espacial.
Nas Américas, como na Grécia de Seferis, a paisagem é também arquivo. Cada montanha carrega nomes, deuses e feridas; cada sítio é uma brecha de tempo onde coexistem o passado idealizado, a violência colonial e o presente marcado pela expropriação simbólica e material. As pedras das cidadelas incas, como as de Micenas ou Delfos, guardam silêncios densos e desafiam a leitura linear de uma história como progresso. O tempo, aqui, é espiral e descendente, não linha reta; é ferida aberta, não cronologia resolvida a ser comemorada. “À maneira de G. S.” pode então ser lido como uma convocação à escuta profunda das ausências, dos esquecimentos, dos apagamentos. O poeta não se dirige apenas à Grécia: ele interroga a linguagem da história e desconfia da narrativa épica, desvelando, assim, os mecanismos do esquecimento. Se no imaginário do mundo da década de 1930 a Grécia é todo um monumento, o poema de Seferis o desconstrói, expondo suas ranhuras, desnudando uma nação ainda por se fazer, e recusando a imagem turística e domesticada de uma pátria sem conflito, dos mitos estanques e das paisagens paradisíacas e intocadas. É ao longo do século XX que a Grécia transforma-se em paraíso de milionários, ao passo que os problemas sociais e a pobreza se agravam.
Seu poema rebelde se aproxima de outras rebeldias que resistem à museificação. A Grécia fere o poeta, assim como Túpac Amaru e Túpac Katari também ferem o historiador. Ícones epistêmicos, objetos ideais de narrativas nacionalistas e de nacionalismos metodológicos e arquivísticos diversos, a rebelião do indígena denuncia os limites da narrativa nacional latino-americana, com sua dupla moral: ao mesmo tempo em que evoca o indígena como origem simbólica, o exclui como sujeito histórico, colocando-o no território demarcado, na literatura engajada, nos preconceitos cotidianos e sob as lentes atentas de um panóptico que impede que o indígena tenha protagonismo político. As insurgências lideradas por esses personagens nos chegam em forma de feridas abertas, porque insistem em perguntar, de dentro da ruína e das brechas da história: “E se tivessem vencido?”
A potência do verso de Seferis ‒ “Onde quer que eu vá, a Grécia me fere” ‒ reside justamente na condensação lírica de uma percepção dilacerada da história: a dor de habitar um mundo onde o passado pesa, mas não basta para consolar. Porque o passado não é apenas o que passou, mas sobretudo como se contou o que passou, e o que se ocultou. Essa ferida também é andina, amazônica, latino-americana. Está nos cantos sem eco, nas danças ritualizadas em praças cheias de turistas, nos monumentos aos vencedores forjados e erguidos por seus vencidos. Está também nos nomes de ruas e monumentos a personagens indígenas, enquanto seus descendentes seguem sendo criminalizados por defender suas terras ancestrais. Nas ilhas e aldeias gregas tomadas pela especulação imobiliária, os seus próprios endógenos-indígenas resistem à gentrificação. Retornar a Giorgos Seferis ‒ e, com ele, pensar desde a América Latina ‒ não é apenas um exercício de analogia: é também “solidariedade epistêmica”. Ambos os mundos enfrentam a erosão de suas cosmologias “endógenas” sob o peso da mercantilização da memória. Ambos os mundos sabem que há demasiado silêncio nas montanhas, nas águas e nas ruínas, que, se escutadas, ainda têm muito o que dizer.
2. É impossível dissociar a escrita da história de seus enquadramentos ideológicos. Toda narrativa histórica encerra, simultaneamente, convenções discursivas, códigos culturais historicamente compartilhados e inflexões conjunturais específicas – sempre embebidas em ideologias, mitos políticos e representações coletivas de um mundo em constante movimento. Um mundo que, embora acelerado e tecnologicamente integrado, segue conectado por dinâmicas desiguais de poder, pela herança e persistência do colonialismo e do imperialismo, que permitem a certos países e grupos continuar explorando outros.
Túpac Amaru, Túpac Katari e os rebeldes de Chayanta, La Plata, Potosí e Oruro não escapam a essa lógica de produção histórica e simbólica. Em primeiro lugar, eles não debutam ao mesmo tempo na historiografia, embora sua historicidade comece a ser moldada desde, pelo menos, a década de 1830, quando Juan María Gutiérrez encomenda ao historiador napolitano Pedro de Angelis a publicação de uma coletânea documental sobre a rebelião de Tupac Amaru, no âmbito da Colección de Obras y Documentos relativos a la Historia Antigua y Moderna de las Provincias del Río de la Plata, publicada em Buenos Aires em 1836. Nesse gesto fundacional, já se delineiam os contornos do conflito interpretativo que perdura até hoje: por um lado, a valorização documental da rebelião, que estimulou verdadeiros “nacionalismos arquivísticos” e metodológicos; por outro, os juízos moralizantes que impregnavam os tratados históricos, como a qualificação de Túpac Amaru como “um irascível cacique indígena”. Essa expressão saturada de racismo e paternalismo, proferida por um intelectual europeu a serviço da construção de uma narrativa nacional no governo de Rosas, serviu para desconsiderar seus atos políticos e o vigor da grande rebelião por ele liderada.
Desde então, a historiografia revisita incessantemente o tema das rebeliões andinas, sobretudo a partir da década de 1940, quando diversas apropriações marxistas, indianistas, nacionalistas e populistas ganharam fôlego em distintos contextos latino-americanos. A confluência dessas leituras transformou os antigos “caudilhos indígenas” em heróis fundacionais da nação – como evidenciam os trabalhos de Jorge Basadre, Alberto Flores Galindo, Pablo Macera, Néstor Taboada Terán e outros. Contudo, apesar da revalorização simbólica promovida por setores progressistas da intelectualidade, permanece em circulação – de forma subterrânea ou explícita – a velha ideia da ilegitimidade da rebelião e da necessidade de tutelar, vigiar ou silenciar seus protagonistas. Esse resíduo ideológico, que ecoa em livros e cadeiras parlamentares, é herança direta do elitismo colonial, nobre e escravocrata, terratenente e capitalista, sempre reencenados por elites que souberam atualizar-se nas estruturas republicanas pós-independência.
Essa herança também se dissemina na cultura popular e no imaginário social por meio de estereótipos duradouros: o indígena como ser preguiçoso, inapto ao trabalho regular, impermeável à moral cristã, frequentemente bêbado e propenso à violência. Esse conjunto de ideias mal assumidas e, que no entanto circulam em narrativas políticas e mitos culturais, busca esvaziar o sentido histórico das rebeliões e naturalizar a velha ideia colonialista de inferioridade dos indígenas, reatualizando a gramática do imperialismo no vocabulário contemporâneo. Nesse sentido, os estudos sobre a rebeldia indígena – assim como sobre quaisquer rebeldias e rebeliões – devem ser compreendidos como campo de disputa simbólica, narrativa e política. Sua reinterpretação não diz respeito apenas ao passado, mas aos usos do passado, incidindo diretamente sobre o presente e moldando possíveis horizontes de futuro. Como afirmou Hayden White (1973), toda escrita da história implica uma escolha de forma, de trama e de moral – ou seja, uma posição ética e política sobre o mundo. Escrever sobre Túpac Amaru ou Túpac Katari é, portanto, escolher entre reproduzir as lógicas da tutela e do silenciamento ou afirmar, com radicalidade, o protagonismo indígena na longa duração da resistência anticolonial.
3. Em uma das tardes de orientação com Manoel Salgado, em meados dos anos 1990, perguntei-lhe como tinha sido a experiência de cursar doutorado na Alemanha nos anos 1980, momento em que poucos programas de pós-graduação no Brasil ofereciam curso de doutorado em história. Ele me contou sobre a disciplina mais intrigante que havia cursado em Berlim, dedicada a explorar possíveis histórias de futuros condicionais. O ano era 1988 e a proposta partia de provocações como: “E se Hitler tivesse vencido a guerra?”.
Muitas vezes essa história contrafactual se alimenta da ficção histórica e até da distopia literária, estabelecendo inusitados diálogos com estudos de folclore e memória, trauma e identidade, hierarquias sociais e exclusão, explorando narrativas de perda, de utopias fracassadas e de caminhos não tomados. Alison Spedding realiza esse exercício de forma criativa e profunda em seu livro De cuando en cuando Saturnina, una historia oral del futuro, ambientado em um futuro pós-apocalíptico na região andina, renomeada como Qullasuyu Marka, antigo território da Bolívia. A protagonista, Saturnina Mamani Guarache (Satuka), líder do movimento anarco-feminista-indianista Comando Flora Tristán, conduz ações de resistência e ataque rebelde contra a persistência de estruturas coloniais e patriarcais. Ao entrelaçar elementos indígenas andinos com visões futuristas e tecnológicas, Spedding oferece uma crítica incisiva à concepção ocidental e linear da história, sugerindo uma temporalidade múltipla que valoriza a oralidade e as tradições locais. Nesse sentido, a obra propõe um diálogo entre ancestralidade e modernidade, resgatando histórias silenciadas e projetando futuros ancestrais alternativos, em que identidades indígenas e femininas protagonizam novas possibilidades políticas e sociais.
Essa pergunta – e se Túpac Amaru tivesse vencido os espanhóis? – não deve ser descartada como mero exercício de especulação. Ela se insere numa linhagem de reflexões contrafactuais que, longe de relativizarem o passado, buscam interrogar as possibilidades abortadas pela violência imperial. Como lembram autores como Enzo Traverso (2009), Quentin Deluermoz e Pierre Singaravélou (2017), a história contrafactual pode operar como um dispositivo heurístico para iluminar os silêncios do passado, tensionar os consensos historiográficos e reinscrever a experiência dos vencidos no campo do possível. Nesse sentido, perguntar-se sobre a vitória de Túpac Amaru é também afirmar a legitimidade histórica de seu projeto insurgente, reconhecer sua racionalidade política e disputar os enquadramentos que o reduziram ao arcaico, ao irracional ou ao exótico.
A história da rebelião de 1780–1781, tal como foi construída nas repúblicas latino-americanas do século XIX, operou majoritariamente no sentido de desativar sua potência disruptiva, desassociando ato rebelde e ato político. Ao mesmo tempo em que os novos Estados-nação evocavam Túpac Amaru como figura simbólica da “raça”, do “povo” ou da “pátria”, apagavam de sua memória política a complexidade das alianças interétnicas, os significados religiosos da rebelião, a organização militar dos sítios, o protagonismo feminino na rebelião e a cosmologia que a sustentava. Os rebeldes foram convertidos em alegorias, e, embora hoje seus nomes figurem em escolas, monumentos, ruas e praças públicas, não são reconhecidos como sujeitos políticos plenos, portadores de um projeto alternativo de mundo.
Em contraste, a trajetória dos rebeldes kleftes gregos revela um processo de heroificação institucionalizada, no qual antigos guerrilheiros de origem camponesa ou marginal, como Theodoros Kolokotronis ou Markos Botsaris, foram elevados ao panteão nacional e incorporados à administração da nova república helênica. A transição da rebeldia para a soberania foi, nesse caso, parcialmente bem-sucedida – ainda que também envolta em mitificações e apagamentos. A memória dos kleftes, reconfigurada por poetas românticos e historiadores do século XIX, serviu para forjar uma continuidade simbólica entre a resistência ao império otomano e a modernidade europeia, operação que consolidou a Grécia moderna como herdeira legítima da antiguidade clássica.
Já nos Andes, a transição da colônia à república se deu por via oposta: o indígena insurgente foi objeto de tutela, não de consagração. Sua rebelião foi reescrita como “excesso”, clara ameaça à ordem e à civilização – e mesmo quando reconhecida, foi cercada por ambivalência. O indígena foi simultaneamente necessário e indesejável para os projetos nacionais latino-americanos: necessário como símbolo originário da nação, mas indesejável como sujeito político ativo. Essa ambivalência produziu um campo de memória truncado, no qual o reconhecimento simbólico não implicou reparação histórica, tampouco integração efetiva. (Postero & Zamosc, 2004; Bonfil Batalla, 1996; Burgos, 1996; Quijano, 2017)
4. Reabrir, portanto, a possibilidade do “e se?” está longe de ser um gesto escapista: inscreve-se num movimento historiográfico crítico e ético, que nos permite repensar os fundamentos da ordem imperial e imaginar outros caminhos possíveis para os usos do passado, para o convívio no presente e a delineação de futuros. A rebeldia indígena, vista sob essa lente, não se esgota em sua derrota militar – ela se projeta como horizonte de possibilidade não realizado, como matriz de uma soberania insurgente ainda por vir. Pensar com as rebeliões, e não apenas sobre elas, é também resgatar suas cosmologias, seus símbolos, seus modos próprios de instituir a justiça, perceber a liberdade e inscrever-se no tempo.
Neste sentido, o exercício comparativo com os kleftes – e suas narrativas de resistência, transfiguração nacional e reapropriação mítica – pode iluminar as formas distintas de incorporação (ou apagamento) da rebeldia popular nas formações pós-imperiais. Mas também nos alerta para os riscos de sua museificação: quando a insurgência vira mito, dilui-se seu potencial de interrogar o presente. Por isso, é preciso manter abertas as brechas da história, onde as vozes subalternas, os caminhos não trilhados e os futuros adiados ainda podem ser escutados e reivindicados.
Diante de tudo isso, torna-se cada vez mais urgente que a escrita da história se abra a uma escuta atenta das insurgências silenciadas – aquelas que não apenas desafiaram as estruturas imperiais de seu tempo, mas que continuam, até hoje, a interpelar os alicerces epistemológicos do saber histórico. Reinscrever Túpac Amaru e os rebeldes andinos no campo do possível – e não apenas do passado vencido – exige recusar as formas de domesticação simbólica operadas pela historiografia tradicional e pelos aparatos memorialísticos do Estado-nação. Comparar sua trajetória com a dos kleftes gregos permite reconhecer tanto os mecanismos de canonização e apagamento quanto as possibilidades de subversão dessas mesmas narrativas. A história, afinal, não é nem apenas o que aconteceu “wie es eigentlich gewesen ist”, nem apenas o registro do que aconteceu, mas fundamental o próprio terreno, em constante disputa, onde se decide o que pode ou não ser lembrado, legitimado, projetado. Entre o excesso e a falta, entre a ruína e o rito, entre a derrota e o retorno, pulsa uma história que ainda não terminou. Uma história em que os vencidos reclamam outra forma de existir no tempo, que não seja como notas de rodapé, mas como protagonistas de um mundo que ainda pode ser outro. Mais uma vez afirmamos que a história, como as ciências e artes e linguagens humanas, se inscreve dentro de panoramas ideológicos, esteja ou não plenamente consciente disso o historiador que efetivamente a escreve.
Escutar as ruínas – como propõe a poesia de Seferis – é reabrir a história para o inacabado. Ao compararmos os Andes e a Grécia, não buscamos simetrias e semelhanças, mas fundamentalmente as brechas onde insurgências esquecidas ou reconfiguradas ainda latejam. Túpac Amaru e os kleftes não habitam apenas o passado: encarnam possibilidades negadas, regimes temporais apagados, mundos soterrados. Quando as ruínas falam, não nos contam apenas o que foi, mas o que poderia ter sido – e ainda pode vir a ser.
Por isso, é preciso escrever a partir dessas brechas: não para preencher o vazio com nostalgia e projeções afetivas e atávicas. mas para cultivá-lo como campo fértil de imaginação política, vigor cultural e impulso ontológico. Entre as pedras de Sacsayhuamán e de Micenas, entre o navio AGONIA 937 e as caravanas de “condenados à morte precoce” que descem dos altiplanos, entre os mortos e os vivos, pulsa um futuro ancestral e insurgente, feito de escuta, memória e insubmissão.
Referências Bibliográficas
Basadre, Jorge. (1968). Historia de la República del Perú (1822–1933). Vols. 1–16. Lima: Editorial Universitaria. eluermoz,
Bonfil Batalla, Guillermo. (1996) [1987]. México profundo: una civilización negada. 2ª ed. México: Grijalbo.
Burgos, Elizabeth. (1996) [1983]. Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia. 8ª ed. México: Siglo XXI Editores.
Flores Galindo, Alberto. (1987). Buscando un Inca: Identidad y utopía en los Andes. Lima: Instituto de Apoyo Agrario.
Gutiérrez, Juan María (ed.). (1836). Colección de obras y documentos relativos a la historia antigua y moderna de las Provincias del Río de la Plata. Buenos Aires: Imprenta del Estado.
Macera, Pablo. (1977). Trabajos de historia. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.
Mignolo, Walter D. (2000). Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking. Princeton: Princeton University Press.
Postero, Nancy Grey & Zamosc, Leon (eds.). (2004). The Struggle for Indigenous Rights in Latin America. Brighton: Sussex Academic Press.
Quentin, e Pierre Singaravélou. (2016). Pour une histoire des possibles: Analyses contrefactuelles et futurs non advenus. Paris: Éditions du Seuil.
Quijano, Aníbal. (2000). “Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America.” International Sociology, 15(2), 215–232.
Quijano, Aníbal. (2017). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Lander, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO.
Seferis, Giorgos. (1985). “Με τον τρόπο του Γ.Σ.” In Ποιήματα (15ª ed.). Atenas: Ίκαρος.
Taboada Terán, Néstor. (1972). Zárate, el Temible Willka: novela de la rebelión indígena de 1898 en Bolivia. La Paz: Editorial Los Amigos del Libro.
Traverso, Enzo. (2012). O passado, modos de usar: história, memória e política. Lisboa: Edições Unipop.
White, Hayden. (1973). Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press.

Trabalhos de campo
Rebeldia, contestação e revoltas
em contextos imperiais:
experiências nativas e imaginação
de futuros ancestrais possíveis.
Em breve
Arquivos Subalternos
Em breve, uma seção sobre arquivos insurgentes, etnografias, oralidade, canto e dança popular nos Andes.


Experiências Indígenas
Em breve, uma seção sobre experiências rebeldes nos Andes.
Insurgências Mediterrâneas, em breve.
Rebeldes e rebeldias no Mediterrâneo



Bio
1. Geografias marginais, vocações rebeldes
Há muitos anos venho me dedicando ao estudo da rebeldia, da contestação e das práticas de resistência, em diálogo com experiências históricas forjadas no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro — um território onde a transgressão social e política antecede, em muito, a chegada das naus europeias. O Rio foi palco de guerras indígenas, insurreições de africanos escravizados, revoltas de colonos alemães e até motins de "famélicos e ébrios" mercenários irlandeses que, segundo a documentação, queixavam-se de terem sido trazidos de tão longe apenas para passar fome: o pão, diziam, "era tão máo que nem o cavallo o queria comer". Cidade atlântica, marcada por encontros e conflitos, sua vocação histórica para a rebeldia é profunda, plural e contínua.
2. Infância entre colinas, bichos e dialetos
Nasci numa maternidade pública no belíssimo bairro imperial de São Cristóvão, outrora o coração da cidade do Rio de Janeiro, em 17 de setembro de 1975, segundo filho de uma família que se formou fora de suas terras de origem. Qualquer um diria que eram “dois italianos”, mas, entre a família calabresa de meu pai, recém-chegada ao Brasil no fim dos anos 1950, e a família de minha mãe, agricultores de café no Espírito Santo, de origem trentina e mantovana, que migraram para o Rio no início dos anos 1970, prevaleceu o lado calabrês. E prevaleceu no grito: nas tradições, na comida, na língua. Era uma família decididamente dialetal. Só quando comecei a estudar italiano, quando tinha por volta de 12 anos, é que entendi que a língua que falávamos em casa não era exatamente o italiano, mas sim o calabrês, mais precisamente o belvederese, uma variante única do cosentino, falada entre Praia a Mare e Paola, provavelmente o dialeto mais incompreensível da região, conhecida como Riviera dei Cedri.
Durante muito tempo, ouvi dizer que os cedros dali — os famosos cedri calabresi, cidra em português, espécie Citrus medica — teriam começado a ser plantados por judeus que chegaram à região muitos séculos antes de Cristo, ainda na primeira diáspora. Mas essa história, embora repetida com certo entusiasmo local, não se sustenta. A própria festividade de Sucot, na qual a cidra é usada como uma das quatro espécies sagradas, só se consolidou como ritual estruturado bem depois, quando o Templo de Jerusalém já estava em funcionamento, e com maior força após o exílio babilônico. A associação entre os judeus da Antiguidade e o cultivo de cidra na Calábria é, no máximo, uma reconstrução simbólica criada séculos mais tarde, para inventar uma historicidade para o judaísmo rabínico. A valorização das cidras da Calábria por comunidades judaicas só aparece de forma clara a partir da Idade Média, especialmente em fontes rabínicas como responsas e tratados de halachá.
O que é fato — e eu mesmo vi — é que, todos os anos, entre setembro e outubro, rabinos ortodoxos de diversas partes do Mediterrâneo, de Israel, da Europa e até dos Estados Unidos, chegam à região em busca do fruto perfeito para celebrar Sucot. Já presenciei grupos inteiros inspecionando plantações com atenção minuciosa, usando lupas em mercados, examinando cada fruto com muita atenção. Vi também judeus ashkenazitas com seus chapéus shtreimel, comprando etrogs enormes e simétricos por valores quase inacreditáveis. A paisagem calabresa se transforma nesses dias, com o ir e vir de figuras excêntricas que, entre murmúrios em hebraico e ídiche, vão caminhando entre os pomares e mercados.
E foi entre os calabreses recém-chegados ao Rio de Janeiro que eu nasci, e com eles vivemos num mesmo prédio durante quase 15 anos anos. Eram pessoas ligadas à terra: pastores de cabras e ovelhas, como meu pai, terratenentes e agricultores que se dedicaram a muitas atividades, as principais eram o cultivo de oliveiras, a cerâmica, a música e o comércio. Meu tio Antonio herdou a tradição musical. Nunca o vi tocar, mas na família se fala muito de como tocava fisarmônica. Minha avó Rosaria tocava o tamburello, espécie de pandeiro usado nas tarantelas. Meu pai sempre gostou de cantar, e sempre fomos uma família muito musical. Eu herdei esse gosto desde muito criança. Eram comuns as festanças em casa, com muita comida, bebida, canto e dança, principalmente depois que nos mudamos para uma casa maior.
Na minha infância, vivíamos com meus pais e irmãos no primeiro andar do edifício familiar, no que um dia fora o porão do casarão de um japonês (de quem meu avô Salvatore havia comprado a casa). No segundo andar, em uma das casas, vivia minha avó, a matriarca nonna Rosaria, com seus muitos cães e gatos, e muitos vasos de manjericão, além do tio Marco ("João"); em outra parte da casa, o tio imediatamente mais velho que meu pai vivia com sua família. Ainda outro tio, Luigi, vivia com sua família, seus seis filhos e sua mulher, na zona Oeste da cidade.
Muitos anos depois, o prédio cresceu para cima, naquele terreno que parecia não ter fim, cujo muro colinda até hoje com o Parque Machado de Assis, na parte mais alta do morro, de onde se tem uma vista de 360 graus daquela parte da cidade: da Ponte Rio-Niterói ao Corcovado, passando pela Tijuca, o centro da cidade e os morros de Santa Teresa, São Carlos e Estácio de Sá. Tudo estava ali à nossa vista: Central do Brasil, Pão de Açúcar, porto, Morro da Providência, Sambódromo, Catedral Metropolitana, Prefeitura — o Morro do Pinto parecia um panóptico de onde víamos a cidade amanhecer, e onde ficávamos até mais tarde alimentando fogueiras nas noites de São João, ou nas visitas dos dias 24 e 25 de dezembro. Os italianos sempre se visitavam nessa ocasião, e intercambiavam pratos típicos de outra paisagem, feitos com nozes, figos e vinho, mel, creme de ovos e farinha finíssima. Cannaricoli, grispelle, embiolati e pudins eram passados entre vizinhas que falavam em dialeto belvederese entre si. Minha avó era a única que não falava português, e mesmo com os brasileiros continuava a falar em dialeto. Todos a entendiam, ou pelo menos assim parecia a ela. Nunca teve dificuldade em se fazer entender naquela colina que simulava sua colina natal à beira do mar Tirreno.
3. Formação e experiências escolares
Estudei no Colégio Pedro II, onde ingressei aos dez anos para o ensino ginasial. Ali aprendíamos não apenas as matérias do currículo nacional básico, mas também latim, grego, francês, espanhol, alemão, xadrez, datilografia e teatro. Havia uma pista olímpica com área para salto à distância, ginástica, piscina semiolímpica e várias quadras poliesportivas, além de um ginásio coberto. Tínhamos aulas de educação artística e música, e nossa agenda, já aos quinze anos, incluía aulas separadas de Matemática I e II, Química Orgânica e Inorgânica, Português e Literaturas. Entre o horto florestal, as duas bibliotecas e os laboratórios de física, química e biologia, fomos crianças e adolescentes felizes que, em bandos enormes, cruzavam a cidade de ônibus: praias da Zona Sul, Centro, Tijuca e muitos bairros do subúrbio do Rio, em aniversários, festas juninas e passeios de fim de semana.
Foi com meus amigos do Pedro II que comecei a viajar pelo Estado: para as serras, depois a Região dos Lagos, Angra… Em minhas viagens vivenciando e compartilhando silenciosas rebeldias, detive-me mais em alguns lugares do que em outros. Desde pequeno, viajava com meus pais e irmãos - de caminhão, de kombi, de sedã. Papai sempre estava trabalhando e nos levava junto. Talvez por compensação por estar quase sempre ocupado, fazia todas as nossas vontades - para desespero da mamãe. Muitas vezes voltamos para o Rio com coelhos, frangos e codornas. Todos, evidentemente, vivos. Minha mãe reclamava, dizendo que "bicho dá trabalho", mas acabava cedendo.
Quando eu tinha treze anos, nos mudamos para a casa onde meus pais ainda vivem, na mesma rua do Pinto, bem entre a zona portuária e o centro da cidade. Numa pequena chácara, a nonna criava suas galinhas, e até mesmo um porco nós tivemos. Havia um pouco de tudo ali: mangueiras, abacateiros, jaqueiras, goiabeiras. Meus pais plantavam batatas, às vezes mandioca; sempre havia muitos pés de manjericão, salsa, e até um pé de café e um pequeno lago onde muitas vezes íamos buscar o agrião para a salada do almoço.
Muitas senhoras italianas, inclusive minha avó, conversavam em dialeto calabrês, enquanto dona Carola secava pimentões ao sol, ou minha avó levava seus cachorros, atados a uma mesma corda, até o mercado ou a feira da rua Santo Cristo. Santa, Eva, Antonietta, Maria, Carolina, Rosaria - mulheres vindas da mesma região que, não por acaso, encontravam-se no Rio de Janeiro, naquela colina com vistas para o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, o centro da cidade e a Central do Brasil. Eram uma rede de pessoas aparentadas: oito ou dez famílias, mais algumas espalhadas pela cidade. Não frequentávamos a igreja - ou, se o fazíamos, certamente não era pela crença religiosa de nossos pais, embora quase todos tenhamos tido aulas de catecismo e alguns fizeram primeira comunhão. Os primeiros sinais que percebi de que minha família tinha origens judaicas vieram das bestemmie do papai, quando estava incazzato. Mas isso é assunto para outro momento.
Muito cedo, eu e meu primo Dodô íamos ao Centro da cidade. Éramos crianças ágeis e atentas. Pegávamos o Cabritinho até a Central, às vezes em bando, e almoçávamos juntos. Era uma farra. Uma patota de crianças.
4. Viagens com o pai e memória calabresa
Toda quinta-feira, papai trabalhava na Serra dos Órgãos, entregando mercadorias em diversos pontos, de Petrópolis aos distritos mais distantes de Teresópolis, passando por Nova Friburgo. Descendo por Cachoeiras de Macacu, sempre parávamos para tomar banho em alguma cachoeira. Eu o acompanhava sempre. Acordávamos às quatro da manhã, carregávamos o caminhão e subíamos a serra. Lemos muitos livros esperando o horário de descarregar; sempre almoçávamos em algum lugar diferente, e meu pai contava sempre muitas histórias da Calábria. Em outras ocasiões, viajávamos para a Região dos Lagos, para Minas Gerais, ou em longas travessias familiares pelo Espírito Santo.
Mesmo diante de paisagens naturais tão tropicais, sempre havia algo que lhe lembrava sua terra natal. Ele passava muito tempo descrevendo em detalhes os caminhos por onde pastoreava ovelhas e carneiros, cabras e cabritos. Sendeiros de parreiras, sinais da devastação deixada pela guerra, o mar bem abaixo, acessível. Muitas vezes minha avó descia para buscar água do mar, e nela cozinhava urtigas. Era o que havia. A nonna teve cinco filhos durante a guerra; meu pai foi o terceiro. Muitas dessas histórias me foram recontadas anos depois, já na Itália, pela zia Angelina ou o zio Daniele.
5. A primeira travessia: retorno à Calábria
Quando me formei, em 1997, recebi uma boa bolsa de estudos do governo italiano, para uma temporada de estudos no extremo-sul da Península, na confluência dos mares Tirreno e Jônico, bem perto da montanha onde meu pai nascera em 1941. A experiência de estar ali pela primeira vez confundia-se com as memórias que havia construído ao longo da vida, compostas pelas histórias que meu pai, meus tios e minha avó compartilhavam sobre a vida deles na Calábria. Aos poucos, tudo aquilo fazia tanto sentido para mim, que não me senti estrangeiro em nenhum lugar. Tios, tias, primos e primas me levavam a todos os cantos: discotecas, praias, colheita de porcini nas montanhas dos Apeninos, passeios de moto. Acompanhei meus primos para colocar as redes ao longo dos campos de oliveiras. Em outubro, com os ventos do outono, começavam a cair.
Eu escolhi percorrer os vilarejos em uma antiga Vespa viola. Minhas tias me disputavam, sempre se superando em pratos deliciosos, que me ligavam, por gosto, cheiro e gesto, à minha família no Brasil. Foi um ano em que conheci mais da metade das vinte regiões italianas, até finalmente ir estudar em Reggio Calabria.
Decididamente ortodoxa e considerada um dos portais para o mundo helênico, a região preservava vivamente suas raízes linguísticas, gastronômicas, musicais... Muitos vilarejos ao redor, como Gallicianò, Roghudi e Pentidattilo, ainda falavam o griko — uma variante do grego koinē profundamente enraizada na oralidade e tradições locais — e por suas ruas as placas eram bilíngues. Reggio Calabria, por sua vez, era um verdadeiro entroncamento de civilizações: ali convivi com pelo menos quinze idiomas diferentes, na universidade Dante Alighieri, numa confluência de povos e etnias, em que as fronteiras se diluíam e podíamos gozar do fato de sermos, todos, estrangeiros uns para os outros. A cidade se orgulhava, com razão, de abrigar em seu Museu Arqueológico Nacional os célebres Bronzi di Riace, duas enormes esculturas em bronze do século V a.C., cujas expressões e anatomias poderosas emergiram intactas do fundo do mar para reconectar aquela parte da Itália com a antiguidade grega, ortodoxa, judaica e muçulmana.
A Calábria era também terra de transgressões ancestrais. Enquanto revoltas camponesas irrompiam como resistência às estruturas do mundo feudal, Tommaso Campanella — nascido em Stilo, no coração da região — desafiava os dogmas da igreja e as verdades herdadas da escolástica aristotélica. Entre prisões e interrogatórios, Campanella sonhou com uma sociedade regida pela razão, pela astrologia e por uma comunhão de recursos e bens, escandalizando os defensores da ordem. Um pensamento heterodoxo, típico das civilizações do Mediterrâneo, coexistia com rebeldia social e moral, nas paisagens abruptas da Calábria, onde o terreno montanhoso e a memória helênica conspiravam, desde sempre, contra qualquer forma de obediência cega.
6. Ecos de insurgência: da fábula ao ofício
Sempre me despertaram muita curiosidade as insurgências no mundo antigo. Desde criança, ouvia com fascínio relatos de tonéis de azeite fervendo sendo despejados das ameias de castelos aragoneses sobre aqueles que ousavam rebelar-se. Essas narrativas, misto de história e fábula contadas por meu pai, falavam de camponeses famintos que, armados apenas com foices, ancinhos e paus, escalavam muralhas e desafiavam senhores poderosos. Sempre entendi esse lugar como espaço de uma força rebelde que reaparecia ciclicamente na minha vida, como um fio atravessando e conectando os tempos.
7. Travessias americanas
Da Argentina a Cuba, de Cuba à Itália, da Itália aos sertões de Minas e Tocantins, cheguei aos Andes argentinos, bolivianos e peruanos quando me tornei professor adjunto na UERJ — onde estudei durante a graduação, o mestrado e o doutorado. Vivi por um ano na zona andina da Argentina, em Jujuy, e mais um ano aos pés das serras de Córdoba, realizando pesquisa de pós-doutorado em centros do CONICET. Conheci arquivos, pessoas e paisagens, e vivi a generosidade da Argentina na pele. Aprendi a amá-la como minha segunda casa.
Um dos irmãos da minha avó, que viera à América no mesmo navio que ela, imigrara para Buenos Aires. A nonna seguiu com o marido para o Rio, e o outro irmão continuou viagem, fixando-se com a família em Nova York. Estar na Argentina era, de certo modo, estar também em minha própria casa. Visitei as sinagogas locais, conversei com o rabino Yovi e com o rabino Marcello Polakoff, e iniciei estudos com o rabino Gabriel Pristzker — uma imersão em minhas origens, reconectando sentidos e reconstruindo memórias.
8. Bolívia: o arquivo e a praça
Há cerca de dez anos, cheguei a Sucre, na Bolívia, para participar de um congresso da Associação de Estudos Bolivianos — um encontro que logo se revelou transcendental: tanto pela relação com a pesquisa histórica e etnográfica quanto pelos vínculos humanos que ali se formaram. Ali conheci pessoas que tornaram-se amigos chegados e parceiros de trabalho. A Bolívia tornou-se um daqueles mananciais aos quais sempre desejo retornar — uma terra generosa, bela e decididamente insurgente. Acompanhei, na leitura de documentos e na experiência cotidiana, muitas rebeldias que paravam a cordilheira e as serras, ao mesmo tempo em que aprendia que outras tantas ocorriam de forma discreta: nas ruas e praças, nos mercados e comunidades, em pequenos gestos, detalhes, práticas cotidianas tão decididamente locais quanto universalmente potentes.
9. Outono francês e retorno à Itália
Em outubro de 2022, tirei uma licença-prêmio e pude passar uma temporada na França, entre os Altos Alpes, Marselha, Nice, Paris e Grenoble. Visitei Mônaco e a Suíça com Stéphanie e Philippe, meu anfitrião, que dirigia o teatro nacional de Gap. Com eles assisti a toda a temporada de espetáculos da cena nacional. Entrevistei uma pastora de ovelhas que também realiza um trabalho fotográfico e artístico ao redor da figura do lobo, o vilão dos pastores alpinos. Reencontrei meu primo Francesco em Roma, vinte e cinco anos depois, e revi em Paris Olivier Zabat e Emmanuelle Manck, cujo filho, Adrien, tem apenas alguns anos a menos que meu filho, Luca, mas já terminava aos 18 anos o mestrado em Matemática na Jussieu-Paris Rive Gauche.
10. Afetos que atravessam fronteiras
Antes de voltar ao Rio de Janeiro, em janeiro de 2023, fui visitar Carmen Bernand em sua casa em Paris. Disse a ela que não sabia como, nem quando, mas que a levaria à minha alma mater. Em março de 2025, no final da minha gestão como coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ, consegui trazê-la para o seminário comemorativo dos trinta anos do Programa. Na ocasião, também participaram outros historiadores de grande destaque, pela qualidade de suas pesquisas e textos: Christine Hunefeldt e Paola Revilla Orías — nós três nos conhecemos em Sucre, em 2015 — Henrique Espada Lima, com quem iniciei um pós-doutorado no ano passado no Programa de Pós-graduação em História Global da UFSC, e a historiadora urbana da Columbia University, Amy Chazkel.
Essa história continua...
Fotografia: Philippe Ariagno

Fotografia: Philippe Ariagno

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