Nas brechas da história

rebeldia, silenciamento e futuros ancestrais entre os Andes e a Grécia

Alexandre Belmonte

6/16/202528 min read

Nas brechas da história: rebeldia, silenciamento

e futuros ancestrais entre a Grécia e a América Latina

Alexandre Belmonte[1]

Resumo

Este ensaio propõe uma leitura crítica do poema “À maneira de G. S.”, de Giorgos Seferis, articulando-o a uma reflexão sobre memória, historiografia e arquivos insurgentes, a partir de uma perspectiva conectada entre a experiência grega e as rebeliões indígenas andinas. O verso inaugural, “Onde quer que eu vá, a Grécia me fere”, condensa a tensão entre memória, ruína e mercantilização do passado, colocando em relevo o esvaziamento simbólico de paisagens e panoramas históricos. A partir dessa chave de leitura, o texto explora o conceito de “indígena” como sujeito endógeno, vinculado cosmologicamente à terra e à memória, mas também como alvo privilegiado das violências imperiais. Estabelece-se um paralelo entre a Grécia e a América Latina, ambos mundos marcados por processos de folclorização, apagamento e museificação de seus legados insurgentes. A análise recupera a dimensão contrafactual de eventos ocorridos em ambas margens imperiais, e sugere que tais questionamentos permanecem como feridas abertas e futuros não realizados. A partir do diálogo entre poesia e história, entre ruína e resistência, propõe-se reinscrever os vencidos como protagonistas históricos, cultivando brechas para imaginar outras formas de existência política e social.

Abstract

This essay offers a critical reading of Giorgos Seferis’s poem “In the manner of G. S.”, intertwining it with a reflection on belonging, identity, and insurgency through a comparative lens between Greek experience and Andean indigenous rebellions. The opening verse – “Wherever I travel, Greece wounds me” – encapsulates the tension between memory, ruin, and the commodification of the past, putting in relief the symbolic hollowing of historical landscapes and panoramas. From this interpretative standpoint, the text explores the concept of the “indigenous” as an endogenous subject, cosmologically rooted in land and memory, yet also as a privileged target of colonial violence. A parallel is drawn between Greece and the Andes, both marked by processes of folklorization, erasure, and museification of their insurgent legacies. The analysis recovers the counterfactual dimension of rebellions occurred in both colonial worlds, and suggests that such insurgencies endure as open wounds and unaccomplished futures. Through the interplay of poetry and history, of ruin and resistance, the essay advocates for reinscribing the defeated as historical protagonists, cultivating fissures to envision alternative forms of political and social existence.

Keywords: Giorgos Seferis; rebellions; counterfactual history; insurgent cosmologies; connected history

Onde quer que eu vá, a Grécia me fere.

Όπου και να ταξιδέψω η Ελλάδα με πληγώνει.[2]

Giorgos Seferis

1. Na abertura de um de seus poemas mais pungentes, o escritor e prêmio Nobel grego Giorgos Seferis (1900-1971) condensa a tensão entre identidade nacional e melancolia histórica, tensão que atravessa sua obra por meio de potentes passagens e perplexos questionamentos. A Grécia que fere o poeta não é a do passado heroico, mas o seu espectro: uma Grécia de promessas adiadas e profecias não cumpridas. É a Grécia da ruína persistente, transformada em commodity, destino turístico idealizado e território de mitos fossilizados. Por suas praias e montanhas ecoam longas esperas e esperanças frustradas. Um século após a independência, o elogio épico já não faz sentido, restando ao poeta o lamento lírico, a elegia atravessada por símbolos, desencanto e inquietação: a angústia de quem tragou o mundo, analisou-o, deglutiu-o e, ao regurgitá-lo, só lhe restou um gemido sufocado no peito.

Como num itinerário fragmentado, o poema se adensa evocando um caleidoscópio de lugares, sons, situações e símbolos, percorrendo montanhas, ilhas, cidades e portos, revelando o abismo entre um passado monumental e um presente esvaziado de sentidos e vinculações. A topografia mítica da Grécia – Salamina, Atenas, Pireu, Omonia, Syntagma – não é aqui território vivo e historizado, mas superfície flutuante e desarticulada, cenário de deslocamentos banais e relações superficiais. Essa Grécia espectral que assombra Seferis não é apenas a nação moderna em crise, mas um palimpsesto de camadas civilizatórias em ruína, onde a continuidade histórica é menos um fio que une do que uma ferida que sangra. Ao nomear lugares antigos, portos, ilhas, santuários, o poeta não celebra uma herança, mas revela a distância entre o nome e o vivido, entre a memória e o presente. A linguagem, que outrora carregava sentidos partilhados, torna-se veículo de exílio: não mais pertença, mas dissonância. Nesse processo, a pátria deixa de ser um chão seguro e converte-se em ausência habitada, em território de perda. A ferida aberta pela modernidade não está no passado que se foi, mas no presente que insiste em disfarçá-lo sob as ruínas estetizadas da antiguidade. Contra essa estetização melancólica, Seferis invoca uma poesia de fraturas, feita de silêncios, falhas e desencaixes: uma arqueologia do íntimo onde o sujeito e a história já não se coincidem. A voz poética de Seferis registra, com ironia incontida:

O que querem todos aqueles que dizem
que estão em Atenas ou no Pireu?
Um vem de Salamina e pergunta ao outro se “vem de Omonia”
“Não, venho da Syntagma”, responde, satisfeito:
“Encontrei o Yannis e ele me pagou um sorvete.”
Enquanto isso, a Grécia viaja
não sabemos de nada, não sabemos que todos nós estamos desembarcados,
não conhecemos a amargura do porto quando todos os navios partem;
zombamos daqueles que a sentem.
Mundo estranho, que diz estar na Ática e não está em lugar algum;
compram confeitos para se casar,
levam mechas de salvação, tiram retratos.

A Grécia que aqui se manifesta é fantasmagórica – um espaço que se pretende situado, mas que “não está em lugar algum”; uma entidade que viaja, mas que já desembarcou sem saber. A banalidade dos gestos cotidianos – tomar sorvete, comprar confeitos, tirar retratos – aparece como sintoma da alienação profunda entre os lugares e nomes carregados de história, narrados em verso e prosa, cantados por rapsodos e conhecidos nos quatro cantos do mundo, e a realidade da Grécia do entreguerras. É nesse esvaziamento de sentido que o poema revela a perda da espessura histórica da experiência, a despolitização da paisagem e o desencantamento diante de um mundo que já não reconhece seus próprios fantasmas. Nessa superfície encenada, em que todos “dizem estar na Ática” mas “não estão em lugar algum”, a rebeldia parece sufocada sob a camada de um cotidiano, sem profundidade, mas suficientemente denso a ponto de obnubilar o passado. Contra a banalização da história e a turistificação da ruína, a poesia de Seferis se ergue como rebeldia e resistência, um chamado ao desconforto, ao reconhecimento da ausência, ao incômodo de quem ainda se lembra que, um dia, ali, houve tragédia, exílio e luta.

O cotidiano esvaziado de sentido projeta os personagens do poema como sonâmbulos em uma noite longa e sem fim, movendo-se por instinto, oníricos e alheios à própria condição. A imagem dos navios ao entardecer no Pireu instaura uma atmosfera suspensa, de estagnação melancólica e ausência de horizonte:

Os navios apitam agora que anoitece no Pireu –
apitam sem parar, apitam – mas nenhum estivador se move,
nenhuma corrente brilha molhada à luz que se extingue,
o capitão permanece petrificado entre branco e dourado.
Onde quer que eu vá, a Grécia me fere;
cortinas de montanhas, arquipélagos, granitos nus…
O navio que viaja se chama AGONIA 937.

O navio leva o nome de uma dor que é numerada, burocrática, como se fosse inescapável, metáfora contundente da condição do grego: um povo em deslocamento constante, sem rumo definido, sem promessa de retorno ou de redenção. A travessia não é uma escolha, mas destino. Não há sombra de consciência histórica entre os que se movem no poema: vivem entre ruínas e simulacros, engajados em gestos automáticos ‒ a conversa trivial, o sorvete ofertado ‒ enquanto a “verdadeira Grécia”, personificada, continua a “viajar” (η Ελλάδα ταξιδεύει), uma entidade errante e inquieta, toda ela uma ferida aberta. Τη καρδιά μου ταξιδεύεις σ’άλλοι γη – “transportas meu coração a outras terras”, segundo diz o verso de uma canção popular na Grécia. A etimologia da palavra ταξιδεύω (taxidévo) reforça essa tensão: viajar é ao mesmo tempo transportar e ser transportado. No poema, há um descompasso trágico entre o que a Grécia carrega consigo e o lugar para onde é transportada: não rumo ao futuro, mas de volta a uma gaiola de narrativas estanques, onde mitos fossilizados ocupam o lugar de sentidos vividos.

O poema, ao registrar essa travessia desprovida de horizonte, anuncia não apenas a perda de um território físico, mas a ruptura com a espessura ontológica do pertencimento. Ao nomear lugares outrora carregados de memória coletiva e sentido político, mas agora reduzidos a pontos banais de passagem, Seferis desvela uma crise mais profunda: a da desterritorialização simbólica, da substituição da experiência vivida por uma geografia de simulacros. Os nomes persistem, mas os vínculos se dissiparam; a terra permanece, mas os sentidos que a animavam foram corroídos por camadas de superficialidade performada. Essa Grécia esvaziada, percorrida por personagens que ignoram “a amargura do porto” e zombam da dor da partida, configura-se como alegoria de um mundo que já não sabe mais onde pisa, que não reconhece os seus mortos, que jazem sob os próprios pés, e que “consome passado” como consome outras commodities. Há, nesse itinerário interrompido, o eco de outras paisagens marcadas por guerras e rebeliões, exílios históricos e apagamentos sistemáticos. É nesse ponto que a errância dos gregos começa a ressoar, de forma inquietante, com outras formas de desenraizamento forçado e silenciamento simbólico, entre as quais se destaca a condição do indígena americano.

Nessa Grécia em trânsito, sempre suspensa entre memória e esquecimento, reverbera a condição histórica do indígena, revelando-o em sua singularidade radical frente ao colonizador: o indígena é o endógeno. Propomos aqui um deslocamento etimológico deliberadamente simbólico da palavra “indígena” ‒ não a partir de sua raiz latina (indus + gignere, “gerado dentro”), mas por meio de sua aproximação com a palavra grega endógeno (ἔνδον, “dentro” + γένος, “linhagem”, “origem”, “geração”) [3]. Não se trata de uma equivalência filológica, mas de uma provocação epistêmica: pensar o indígena como aquele que se inscreve dentro de um território relacional e persistente, sujeito cuja existência está ancorada em cosmologias de reciprocidade, pertença e continuidade em relação a essa persistência, que o vincula com a terra. Trata-se daquele que habita o tempo profundo da paisagem em que nasce, mantendo vínculos com os vivos e os mortos, com os ciclos de seu mundo e com os ritmos cosmológicos que entrelaçam vida, ancestralidade e lugar de origem. Justamente por isso, o sujeito endógeno costuma ser o alvo preferencial das violências imperiais, que transformaram a terra em recurso, a paisagem em mercado, o corpo em cifra. A expropriação começa pelo território, mas avança sobre a memória, a linguagem, as narrativas e os sentidos do existir. Contra isso, insurgem arquivos vivos ‒ como as ruínas evocadas no poema de Seferis, e o próprio poema em si ‒ onde o pertencimento histórico ainda resiste como clamor, onde o passado não está morto, mas em vigília.

Ser endógeno, nesse horizonte conceitual, é afirmar um pertencimento insurgente e irredutível ‒ anterior, posterior e também imanente ao domínio imperial ‒, envolvendo-o de tal forma que se converte em seu mais tenaz obstáculo. Trata-se de uma inscrição no mundo não como posse, mas como vínculo: uma relação enraizada que resiste à lógica da extração, da desterritorialização e do apagamento simbólico. Contra a representação do indígena como figura fossilizada do passado, propõe-se aqui o indígena como sujeito histórico pleno ‒ portador de cosmologias vivas, práticas políticas autônomas e futuros ainda em aberto. Estar ou nascer na Grécia, no Peru ou na Bolívia não implica, por si só, vínculo com os legados indígenas respectivos, frequentemente relegados à condição de marca turística, signo exótico ou fórmula folclorizada. A autonomia indígena deve sempre estar sob rigorosa vigilância de estruturas mais poderosas, tanto em forma de narrativas culturalmente referendadas quanto formas institucionalizadas de controle físico e hierarquização social. A impaciência e irritação de Seferis em relação à banalidade de um cotidiano (feito de pessoas inconscientes da própria historicidade que possibilita aquele cotidiano), se entrelaçam, nessa perspectiva, à crítica indígena à apropriação (pelo mercado, pelos partidos políticos etc.) de símbolos ancestrais, esvaziados de suas cosmologias, de seus sentidos originários: o símbolo máximo disso é o fato de que o indígena não é dono da terra, mas, ao contrário, é “a terra que o possui”, inscrição por demais poética num mundo regulado por mercados e investimentos.

Assim como Seferis afirma que os gregos modernos estão todos “desembarcados” (είμαστε ξέμπαρκοι όλοι εμείς), privados da âncora simbólica que os vinculava a uma continuidade civilizacional, também os indígenas foram progressivamente desaninhados de suas próprias cosmologias. Nem a modernidade os absorveu plenamente, nem suas tradições foram autorizadas a florescer como horizonte político, mas, ao contrário, foram reelaboradas, domesticadas e folclorizadas ao sabor “das elites”. Desse processo decorreu um regime no qual os vestígios do passado convivem com um presente que, não só não os compreende, mas os instrumentaliza como mitos políticos. De ideologia em ideologia, vão-se distorcendo epistemes e ontologias, e se produzem tantas representações do indígena quantas forem necessárias à sustentação de diferentes projetos políticos e ideológicos. O indígena aí já não é apenas o aborígene latino-americano; é também seu antípoda nos Bálcãs e Grécia insular.

Essa dissociação simbólica nos acompanha desde a raiz da geografia imperial que herdamos. Desde os tratados de Tordesilhas e Saragoça até as encomiendas, mitas e cartografias fantásticas da América “tropical”, o espaço continental foi ordenado a partir de uma lógica que separava o mundo físico do mundo social, a natureza da cultura. Esse binarismo apagou cosmologias locais e naturalizou a violência epistêmica do imperialismo. O continente passou a ser representado por estereótipos: montanhas intransponíveis, florestas impenetráveis, civilizações sem história. A geografia moderna, marcada por fronteiras fixas e por uma leitura ocidental da paisagem, suprimiu as redes ancestrais de circulação, os sistemas agrários comunitários, os caminhos sagrados e os modos indígenas de orientação espacial. (provocação: todo este parágrafo poderia também ser referido à invasão otomana no mundo bizantino. Os espanhóis pareciam copiar diretamente dos otomanos a forma de dividir e administrar as colônias)

Na América indígena, como na Grécia de Seferis, a paisagem é também arquivo. Cada montanha carrega nomes, há deuses que as protegem, houve histórias que ali se desenrolaram, tão antigas e indocumentadas que fazem parte do que se considera mitologia; cada montanha ou praia é uma brecha de tempo onde coexistem o passado idealizado, a violência imperial e o presente marcado pela expropriação simbólica e material. As pedras de Cuzco e Machu Picchu, como as de Micenas ou Delfos, guardam silêncios densos e desafiam uma leitura linear da história. O tempo, aqui, é espiral e descendente, e não se move em linha reta em direção ao “futuro”; há feridas abertas, e não uma cronologia bem resolvida a ser celebrada. “À maneira de G. S.” pode então ser lido como uma convocação à escuta profunda das ausências, dos esquecimentos, dos apagamentos. O poeta não se dirige apenas à Grécia: ele interroga a linguagem da história e desconfia da narrativa épica, desvelando, assim, os mecanismos do esquecimento. Se no imaginário do mundo da década de 1930 a Grécia é todo um monumento, o poema de Seferis o desconstrói, expondo suas ranhuras, desnudando uma nação ainda por se fazer, e recusando a imagem turística e domesticada de uma pátria sem conflitos, dos mitos estanques e das paisagens paradisíacas e intocadas. É ao longo do século XX que a Grécia transforma-se em paraíso de milionários, ao passo que os problemas sociais e a pobreza se agravam, alienando as comunidades locais dos seus territórios de origem.

A potência do verso de Seferis ‒ “Onde quer que eu vá, a Grécia me fere” ‒ reside justamente na condensação lírica de uma percepção trágica da história: a experiência de habitar um mundo onde o passado é onipresente e palpável, mas não o suficiente para preencher o abismo entre o que foi e o que é, entre a memória e o esquecimento, entre os vestígios e a uma consciência histórica mais profunda. Porque o passado não é apenas o que passou, mas sobretudo como se contou o que passou, e o que se ocultou. Esse mesmo tipo de percepção dilacerada da história é também andina, amazônica, latino-americana. É o trauma das margens imperiais, dos colonizados e suas cosmovisões soterradas pela religião imposta, pelos modelos de comportamento social, pelo trabalho compulsório, pela acumulação de bens, pela destruição dos ícones do “endógeno”, seja ele o indígena americano ou o grego. Esse desconforto se apresenta nos cantos sem eco, nas danças ritualizadas em praças cheias de turistas, nos monumentos aos vencedores forjados e erguidos por seus vencidos. Se nota também nos nomes de ruas e monumentos a personagens indígenas, enquanto seus descendentes, sempre nas margens, seguem sendo criminalizados por defender suas terras ancestrais. Nas ilhas e aldeias gregas tomadas pela especulação imobiliária, os seus próprios endógenos-indígenas resistem à gentrificação. Retornar a Giorgos Seferis ‒ e com ele pensar desde a América Latina ‒ não é apenas um exercício de analogia: é também “solidariedade epistêmica”. Ambos os mundos enfrentam a erosão de suas cosmologias indígenas sob o peso da mercantilização da memória, da transformação de narrativas em commodities, que hoje orientam o planejamento das cidades, o investimento em determinados setores e o apagamento de histórias e cosmologias “indesejáveis”. Ambos os mundos sabem que há demasiado silêncio nas montanhas, nas praias, nos rios e ruínas, que, se escutadas, ainda têm muito o que dizer.

Seu poema rebelde se aproxima de outras rebeldias que resistem à museificação. A Grécia fere o poeta, assim como Túpac Amaru e Túpac Katari também ferem o latino-americano. Ícones epistêmicos, objetos ideais de narrativas nacionalistas e de nacionalismos metodológicos e arquivísticos diversos, a rebeldia do indígena à ordem imperial denuncia os limites da narrativa nacional latino-americana, com sua dupla moral: ao mesmo tempo em que evoca o indígena como origem simbólica, o exclui como sujeito histórico, colocando-o no território demarcado, na literatura engajada, nos preconceitos cotidianos e sob as lentes atentas de um panóptico que impede que o indígena tenha protagonismo político. As insurgências lideradas por esses personagens nos chegam em forma de feridas abertas, porque insistem em perguntar, de dentro da ruína e das brechas da história: “E se tivessem vencido?”

Essa pergunta não é apenas uma curiosidade especulativa, mas uma convocação ética e política: ela nos obriga a reimaginar a história a partir de suas fraturas, de seus desvios abortados, de suas potências não realizadas. Interpelados por essas ruínas insurgentes, já não é possível permanecermos no conforto dos marcos narrativos consagrados pela modernidade, e somos levados a escavar as camadas de silenciamento que sustentam os monumentos da ordem, dentre esses a própria narrativa histórica. Túpac Amaru e Túpac Katari, como os gregos de Seferis, não apenas evocam o passado: eles nos chegam em forma de feridas que se recusam a cicatrizar, enquanto o mundo que as produziu continua a operar, sob outras formas, os mesmos mecanismos de exclusão, silenciamento e apagamento daqueles que, por muitas razões, devem estar nas margens.

Essa recusa em cicatrizar é o que dá à temática indígena sua atualidade radical. A cada gesto de resistência, reativam-se cosmologias políticas que a história oficial tentou enterrar sob o peso da conciliação nacional e da retórica desenvolvimentista. Nas montanhas andinas, como nas montanhas e arquipélagos gregos, os arquivos não se restringem a documentos: estão inscritos na terra, esculpidos em pedra, nos corpos, nos cânticos, nos silêncios ritualizados. O tempo linear que sustenta a narrativa histórica moderna, com seu progresso acumulativo e suas derrotas resignadas, é desestabilizado por essa outra temporalidade, onde o passado não está morto, mas sim em estado de vigília, e onde a história não é uma linha, mas uma espiral feita de retornos e lampejos. É a rebeldia indígena, em sua densidade cosmológica e política, com seu enraizamento endógeno inescapável, que rompe o tempo retilíneo do imperialismo e reabre a possibilidade do porvir.

A rebelião, nesse sentido, não é apenas um evento político: é uma categoria analítica e existencial que permite pensar a história desde suas margens, suas montanhas, ilhas, sertões e subterrâneos. Pensar com Seferis e com os insurgentes andinos é pensar desde os interstícios da memória, onde ainda vibram vozes que foram obrigadas a calar. É reencontrar, nas ruínas da modernidade, não os escombros de um mundo vencido, mas os traços de outros mundos possíveis. E perguntar por eles, ainda hoje, é uma forma de recusar a vitória dos vencedores. Essa escuta das brechas e das ruínas nos convida a deslocar a história de seus centros canônicos e seus arquivos autorizados. Como propôs Michel-Rolph Trouillot, o poder de silenciar faz parte da própria produção da história: não se trata apenas do que aconteceu, mas do que pôde ser narrado, legitimado e arquivado. Os vencidos, frequentemente, não foram apenas derrotados em campo, mas também nos registros que sobreviveram. É por isso que olhar para a rebelião na história exige também uma crítica do arquivo ‒ uma busca por documentos oblíquos, vestígios interrompidos, vozes transversas que escaparam ao crivo da normalização estatal, ao mesmo tempo em foram excluídas dos anais da história. Pensar com tais arquivos insurgentes é reabrir a história às suas ausências eloquentes e àquilo que ainda insiste em ser dito, mesmo que pelas margens. A poesia de Seferis se inscreve nessa brecha.

Nesse sentido, pensar com a poesia uma história contrafactual não deve ser confundido com pensar pela ótica da ficção especulativa ou uma forma de nostalgia anacrônica. O contrafactual opera como ferramenta crítica, desnaturalizando o real ao interrogar seus caminhos interrompidos. Perguntar “e se os indígenas tivessem vencido os espanhóis já no século XV?”, ou “e se os gregos tivessem vencido os otomanos já no século XIV?” é confrontar as condições de possibilidade da derrota, e, ao fazê-lo, escancarar os mecanismos que sustentaram as vitórias dos impérios. Não se trata de construir utopias inofensivas, mas de reinscrever no presente as virtualidades abortadas por processos de dominação, e que se estenderam à atividade historiográfica.

A rebelião, quando lida como categoria epistemológica – eixo em torno do qual é possível pensar a sociedade, seu tempo, suas conexões e contradições – torna-se então algo mais do que um evento: é uma forma de pensar o mundo a partir de suas fraturas. E é precisamente nessas fraturas que operam as “cosmologias insurgentes”. Cosmologias que não apenas oferecem chaves de compreensão do mundo, mas também modos outros de habitá-lo, de vincular o tempo ao território, de fundar legitimidades locais. Tais cosmologias não cabem nos marcos que definem o que é poder e soberania na modernidade, nem nas gramáticas políticas do liberalismo ou do marxismo clássico: elas operam segundo outras lógicas, outros ritmos, outros princípios de vida e de justiça.

Por isso, escutar as vozes insurgentes, seja nos Andes, nos Bálcãs, nas ilhas do Egeu ou nas florestas amazônicas, é mais do que um ato hermenêutico. É um exercício radical de reorientação epistemológica, um convite a reencantar e repovoar a história com os mundos que ela tentou expulsar de si. É, em última instância, a possibilidade de imaginar que a história ainda pode ser outra.

2. É impossível dissociar a escrita da história de seus enquadramentos ideológicos. Toda narrativa histórica incorpora, simultaneamente, convenções discursivas, códigos culturais compartilhados e inflexões conjunturais específicas, sempre atravessadas por ideologias, mitos políticos, narrativas religiosas e representações coletivas sobre um mundo que está em constante transformação. Esse mundo, embora acelerado e tecnologicamente interconectado, continua sendo moldado por dinâmicas profundamente desiguais de poder, nas quais a herança colonial e a persistência de estruturas imperialistas seguem permitindo que determinados países, grupos, instituições e pessoas explorem e subordinem outros. A escrita da história, nesse contexto, não é neutra nem inocente: ela participa da disputa simbólica por legitimidade, pertencimento e memória dos seus agentes – e dos seus pacientes. Escrever sobre o passado é, também, intervir nos sentidos do presente e nas possibilidades do futuro.

Túpac Amaru, Túpac Katari e os rebeldes de Chayanta, La Plata, Potosí e Oruro não escapam à lógica de produção histórica e reprodução simbólica que atravessa a escrita da história. Em primeiro lugar, eles não estreiam simultaneamente na historiografia, ainda que sua historicidade comece a ser moldada desde, pelo menos, a década de 1830, quando Juan María Gutiérrez encomenda ao historiador napolitano Pedro de Angelis a publicação de uma coletânea documental sobre a rebelião de Túpac Amaru, no âmbito da Colección de Obras y Documentos relativos a la Historia Antigua y Moderna de las Provincias del Río de la Plata, publicada em Buenos Aires, em 1836. Já nesse momento delineia-se o contorno de um conflito interpretativo que persiste até hoje: de um lado, a valorização documental da rebelião, que alimentou verdadeiros nacionalismos arquivísticos e metodológicos; de outro, os juízos moralizantes que impregnavam os tratados históricos, como a qualificação de Túpac Amaru como “um irascível cacique indígena” (De Angelis, 1836). Tal expressão, saturada de racismo e paternalismo, escrita por um intelectual europeu a serviço da construção de uma narrativa nacional no governo Rosista, serviu para desqualificar os atos políticos do líder andino e desconsiderar o vigor da grande rebelião que protagonizou.

Desde então, a historiografia revisita incessantemente o tema das rebeliões indígenas andinas, sobretudo a partir da década de 1940, quando diversas apropriações (marxistas, indianistas, nacionalistas e populistas) ganharam fôlego em distintos contextos latino-americanos. A confluência dessas leituras transformou os antigos “caudilhos indígenas” em heróis fundacionais de algumas nações sul-americanas, como atestam os trabalhos de Jorge Basadre, Alberto Flores Galindo, Pablo Macera, Néstor Taboada Terán e outros. No entanto, apesar da revalorização simbólica promovida por setores progressistas da intelectualidade, permanece em circulação, de forma subterrânea ou explícita, a velha noção da ilegitimidade da rebelião e da necessidade de tutelar, vigiar ou silenciar seus protagonistas. Esse resíduo ideológico, que ecoa nos livros didáticos, nos editoriais da grande imprensa e nas cadeiras parlamentares, é herança direta do elitismo imperialista: escravocrata, terratenente e capitalista, reciclado e reencenado por elites que souberam atualizar seus mecanismos de dominação no interior das estruturas republicanas pós-independência.

Trata-se de uma herança que também se dissemina na cultura popular e no imaginário social por meio de estereótipos duradouros: o indígena como ser preguiçoso, inapto ao trabalho regular, impermeável à moral social, frequentemente bêbado e propenso à violência. Esse conjunto de ideias, muitas vezes mal assumidas, mas amplamente presentes em discursos políticos, expressões culturais e crenças do senso comum, atua como operador simbólico do imperialismo. Ao esvaziar o sentido histórico das histórias e culturas locais, as narrativas contribuem para naturalizar a velha gramática imperial da inferiorização dos povos indígenas, agora reencenada em vocabulário contemporâneo e travestida de pragmatismo ou tecnicismo administrativo.

Nesse sentido, os estudos sobre rebeldias e rebeliões constituem um campo de disputa simbólica, narrativa e política. Sua reinterpretação não se limita ao passado: diz respeito, sobretudo, aos usos do passado no presente e aos horizontes de futuro que esses usos tornam possíveis ou inviáveis. Como afirmou Hayden White (1973), toda escrita da história implica uma escolha formal, uma estrutura de trama e uma orientação moral; ou seja, escrever história é, inevitavelmente, adotar uma posição ética e política diante do mundo. Escrever sobre Túpac Amaru ou Túpac Katari coloca o historiador entre reproduzir as lógicas da tutela e do silenciamento ou afirmar, com radicalidade, o protagonismo indígena na longa duração da resistência anti-imperialista.

3. Muitas vezes a história contrafactual se alimenta da ficção histórica e até da distopia literária, estabelecendo inusitados diálogos com estudos de folclore e memória, trauma e identidade, hierarquias sociais e exclusão, explorando narrativas de perda, de utopias fracassadas e de caminhos não tomados. Alison Spedding realiza esse exercício de forma criativa e profunda em seu livro De cuando en cuando Saturnina, una historia oral del futuro, ambientado em um futuro pós-apocalíptico na região andina, renomeada como Qullasuyu Marka, antigo território da Bolívia. A protagonista, Saturnina Mamani Guarache (Satuka), líder do movimento anarco-feminista-indianista Comando Flora Tristán, conduz ações de resistência e ataque rebelde contra a persistência de estruturas coloniais e patriarcais. Ao entrelaçar elementos indígenas andinos com visões futuristas e tecnológicas, Spedding oferece uma crítica incisiva à concepção ocidental e linear da história, sugerindo que a história se move numa temporalidade múltipla, valorizando a oralidade e as tradições locais. Nesse sentido, a obra propõe um diálogo entre ancestralidade e modernidade, resgatando histórias silenciadas e projetando futuros ancestrais alternativos, em que identidades indígenas e femininas protagonizam novas utopias e possibilidades políticas e sociais.

As perguntas “e se o império bizantino tivesse vencido o otomano?”, ou “e se os indígenas tivessem vencido os espanhóis?” não devem ser descartadas como mero exercício de especulação. Elas se inserem numa linhagem de reflexões contrafactuais que, longe de relativizarem o passado, têm buscado interrogar as possibilidades abortadas pela violência imperial. Como lembram autores como Enzo Traverso (2009), Quentin Deluermoz e Pierre Singaravélou (2017), a história contrafactual pode operar como um dispositivo heurístico para iluminar os silêncios do passado, problematizar os consensos historiográficos e reinscrever a experiência dos vencidos no campo do possível. Nesse sentido, perguntar-se sobre a vitória dos gregos bizantinos ou dos incas e astecas é também afirmar a legitimidade histórica de seus projetos de civilização, reconhecer sua racionalidade política e disputar os enquadramentos teóricos e epistemológicos que os reduziram ao arcaico, ao irracional ou ao exótico.

No caso americano, a historiografia da rebelião de 1780-1781, tal como foi construída nas repúblicas latino-americanas do século XIX, operou majoritariamente no sentido de desativar sua potência disruptiva, desassociando o ato rebelde do ato político, já que partia da premissa segundo a qual os indígenas eram inaptos para a política e deveriam ser tutelados. Ao mesmo tempo em que os novos Estados-nação evocavam Túpac Amaru como figura simbólica da “raça”, do “povo” ou da “pátria”, apagavam de sua memória política a complexidade das alianças interétnicas, os significados religiosos da rebelião, a organização militar dos sítios, o protagonismo feminino na rebelião e a cosmologia que a sustentava. Os rebeldes foram convertidos em alegorias, e, embora hoje seus nomes figurem em escolas, monumentos, ruas e praças públicas, não parecem ser reconhecidos como sujeitos políticos plenos, portadores de um projeto alternativo de mundo. São resquícios e fantasmas de utopias passadas e irrecuperáveis. (Utopia andina reencenada em forma de farsa com Evo Morales?)

Em contraste, a trajetória dos rebeldes kleftes gregos, que lutaram pela independência grega do Império Otomano, revela um processo de heroificação institucionalizada, no qual antigos guerrilheiros de origem camponesa e marginal, como Theodoros Kolokotronis ou Markos Botsaris, foram elevados ao panteão nacional e incorporados à administração da nova república helênica. A transição da rebeldia para a soberania foi, nesse caso, parcialmente bem-sucedida, ainda que também envolta em mitificações e apagamentos. O movimento por eles liderado entra finalmente para a história como a Revolução Grega. A memória dos kleftes, reconfigurada por poetas românticos e historiadores do século XIX, serviu para forjar uma continuidade simbólica entre a resistência ao império otomano e a modernidade europeia, operação que consolidou a Grécia moderna como herdeira legítima da antiguidade clássica.

Já na América, a transição da condição de colônias de impérios europeus a de repúblicas independentes se deu por via oposta: o indígena foi objeto de tutela, não de consagração. Seus projetos políticos foram reescritos como “excesso”, clara ameaça à ordem e à civilização, e, mesmo quando finalmente reconhecidos, suscitaram discussões cercadas por ambivalência. O indígena foi simultaneamente necessário e indesejável para os projetos nacionais latino-americanos: necessário como símbolo originário de nações possíveis, o elo com uma natureza que, em todo caso, lembrava a Arcádia, mas indesejável como sujeito político ativo. Essa ambivalência produziu um campo de memória truncado, no qual o reconhecimento simbólico não implicou reparação histórica, tampouco integração efetiva (Postero & Zamosc, 2004; Bonfil Batalla, 1996; Burgos, 1996; Quijano, 2017).

3. Reabrir, portanto, a possibilidade do “e se?” está longe de ser um gesto escapista: inscreve-se num movimento historiográfico crítico e ético, que nos abre novas perspectivas para repensar os fundamentos da ordem imperial e imaginar outros caminhos possíveis para os usos do passado, para o convívio no presente e a delineação de futuros. A rebeldia indígena, vista sob essa lente, não se esgota em sua derrota militar: ela se projeta como horizonte de possibilidade não realizado, como matriz de uma soberania insurgente ainda por vir. Pensar com as rebeldias e as rebeliões, e não apenas sobre elas, é também resgatar suas cosmologias, seus símbolos, seus modos próprios de pensar e instituir a justiça, de perceber a liberdade e de se (re)inscrever no tempo.

Neste sentido, o exercício comparativo com os kleftes, e suas narrativas de resistência, transfiguração nacional e reapropriação mítica, pode iluminar as formas distintas de incorporação (ou apagamento) da rebeldia popular em sociedades pós-coloniais latino-americanas. Também nos alerta para os riscos da museificação: quando a rebeldia vira mito, dilui-se seu potencial de interrogar o presente. Por isso, é preciso manter abertas as brechas da história, onde vozes subalternas, há muito silenciadas, caminhos não trilhados e futuros adiados ainda podem ser escutados e reivindicados.

Diante disso, a historiografia já há algumas décadas demonstra que se tornou cada vez mais imprescindível que a escrita da história se abrisse a uma escuta atenta de passados silenciados, aquelas vozes que não apenas desafiaram as estruturas imperiais de seu tempo, mas que continuam, até hoje, a interpelar os alicerces epistemológicos do narrar e do fazer historiográfico. Reinscrever Túpac Amaru e os rebeldes andinos no campo do possível, e não apenas do passado “vencido”, exige recusar as formas de domesticação simbólica operadas pela historiografia tradicional e pelos aparatos memorialísticos do Estado-nação. Comparar sua trajetória com a dos kleftes gregos nos abre diálogos que buscam reconhecer tanto os mecanismos de canonização e apagamento quanto as possibilidades de subversão literária dessas mesmas narrativas. A história, afinal, não é nem apenas o que aconteceu “wie es eigentlich gewesen ist”, como de fato foi, nem apenas o registro do que aconteceu, mas, fundamentalmente, o próprio terreno, em constante disputa, onde se decide o que pode ou não ser lembrado, legitimado, projetado. Entre o excesso e a falta, entre a ruína e o rito, entre a derrota e o retorno, pulsam histórias que ainda não terminaram. Histórias em que os vencidos reclamam outra forma de existir no tempo, que não seja como notas de rodapé, mas como protagonistas de um mundo que ainda pode ser outro. Mais uma vez afirmamos que a história, como as ciências, as artes e as linguagens humanas, se inscreve dentro de panoramas ideológicos, esteja ou não plenamente consciente disso o historiador que efetivamente a escreve.

Escutar as ruínas, como propõe a poesia de Seferis, pode finalmente significar reabrir a história para o inacabado. Ao compararmos a América Latina e a Grécia, não buscamos simetrias e semelhanças, mas fundamentalmente as brechas onde vozes esquecidas, silenciadas e reconfiguradas ainda estão latentes. Túpac Amaru e os kleftes não habitam apenas o passado: encarnam possibilidades negadas, regimes temporais apagados, mundos e cosmologias inteiras soterradas. Quando as ruínas falam, não nos contam apenas o que foi, mas o que poderia ter sido, e ainda pode vir a ser. Por isso, é preciso escrever a partir dessas brechas: não para preencher o vazio com nostalgia e projeções afetivas e atávicas, mas para cultivá-lo como campo fértil de imaginação política, vigor cultural e impulso ontológico. Entre as pedras de Sacsayhuamán e as de Micenas, entre o navio AGONIA 937 e as caravanas de “condenados à morte precoce” que descem dos altiplanos, entre os mortos e os vivos, pulsam futuros ancestrais, insurgentes, feitos de escuta, memória e insubmissão.

Anexo

À maneira de G. S.


Onde quer que eu vá, a Grécia me fere.

No Pélion, entre castanheiros, a camisa do Centauro

deslizava entre as folhas para envolver meu corpo

enquanto eu subia a ladeira e o mar me acompanhava,

subindo também como o mercúrio de um termômetro,

até encontrarmos as águas da montanha.

Em Santorini, tocando ilhas que afundavam,

ouvindo soar uma flauta entre as pedras-pomes,

uma flecha me cravou a mão na amurada —

disparada subitamente

dos confins de uma juventude já declinada.

Em Micenas, ergui as grandes pedras e os tesouros dos Atridas

e deitei-me com eles no hotel da “Bela Helena de Menelau”;

desapareceram apenas na aurora, quando Cassandra cantou

com um galo pendurado em seu pescoço negro.

Em Spetses, em Poros e em Mykonos

me adoeceram os barqueiros.

O que querem todos esses que dizem

estar em Atenas ou no Pireu?

Um vem de Salamina e pergunta ao outro se “vem da Praça Omonia”.

“Não, venho da Praça Syntagma” — responde, satisfeito —

“encontrei Yannis e ele me ofereceu um sorvete.”

Enquanto isso, a Grécia viaja.

Nada sabemos, nada sabemos —

não sabemos que estamos todos desembarcados;

não conhecemos a amargura do porto

quando partem todos os navios;

zombamos daqueles que a sentem.

Um mundo estranho este que diz estar na Ática

e não está em parte alguma;

compram amêndoas açucaradas para se casar,

guardam mechas de cabelo como amuletos, tiram fotografias —

o homem que vi hoje sentado diante de um fundo com pombos e flores

deixava a mão do velho fotógrafo alisar suas rugas,

marcas deixadas no rosto

por todas as aves do céu.

Enquanto isso, a Grécia viaja — viaja sem cessar.

E se “vemos florir o mar Egeu de cadáveres”

são aqueles que tentaram alcançar o grande navio nadando,

os que se cansaram de esperar por navios que jamais partem:

o ELSSI, o SAMOTRÁCIA, o AMVRAKIKÓS.

Os navios apitam agora, ao anoitecer, no Pireu;

apitam sem parar, apitam,

mas nenhum estivador se move,

nenhuma corrente brilha molhada

sob a última luz que se extingue;

o capitão permanece petrificado, em branco e dourado.

Onde quer que eu vá, a Grécia me fere:

cortinas de montanhas, arquipélagos, granitos nus…

O navio que navega se chama AGONIA 937.

Navio a vapor Ávlis, à espera de partir.

Verão de 1936.

Giorgos Seferis, Poemas, editora Íkaros, 1985[4].

Referências Bibliográficas

Basadre, Jorge. (1968). Historia de la República del Perú (1822–1933). Vols. 1–16. Lima: Editorial Universitaria. eluermoz,

Bonfil Batalla, Guillermo. (1996) [1987]. México profundo: una civilización negada. 2ª ed. México: Grijalbo.

Burgos, Elizabeth. (1996) [1983]. Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia. 8ª ed. México: Siglo XXI Editores.

Flores Galindo, Alberto. (1987). Buscando un Inca: Identidad y utopía en los Andes. Lima: Instituto de Apoyo Agrario.

Gutiérrez, Juan María (ed.). (1836). Colección de obras y documentos relativos a la historia antigua y moderna de las Provincias del Río de la Plata. Buenos Aires: Imprenta del Estado.

Macera, Pablo. (1977). Trabajos de historia. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.

Mignolo, Walter D. (2000). Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking. Princeton: Princeton University Press.

Postero, Nancy Grey & Zamosc, Leon (eds.). (2004). The Struggle for Indigenous Rights in Latin America. Brighton: Sussex Academic Press.

Quentin, e Pierre Singaravélou. (2016). Pour une histoire des possibles: Analyses contrefactuelles et futurs non advenus. Paris: Éditions du Seuil.

Quijano, Aníbal. (2000). “Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America.” International Sociology, 15(2), 215–232.

Quijano, Aníbal. (2017). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Lander, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO.

Seferis, Giorgos. (1985). “Με τον τρόπο του Γ.Σ.” In Ποιήματα (15ª ed.). Atenas: Ίκαρος.

Taboada Terán, Néstor. (1972). Zárate, el Temible Willka: novela de la rebelión indígena de 1898 en Bolivia. La Paz: Editorial Los Amigos del Libro.

Traverso, Enzo. (2012). O passado, modos de usar: história, memória e política. Lisboa: Edições Unipop.

White, Hayden. (1973). Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press.


[1] Alexandre Belmonte é professor associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É bolsista do Programa Prociência/UERJ e pós-doutorando no Programa de Pós-graduação em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina. É colaborador da Escola de História e Arqueologia da Universidade Aristóteles de Thessaloniki.

[2] Tradução nossa.

[3] Convém sempre lembrar que a apropriação de noções como génos, linhagem ou origem comum já foi historicamente utilizada por ideologias nacionalistas, racistas e totalitárias, com consequências devastadoras. Do fascismo italiano ao nazismo alemão, passando por diversos projetos eugenistas no mundo atlântico e mediterrâneo, a ideia de uma identidade enraizada, associada a uma suposta pureza endógena, foi convertida em fundamento para políticas de exclusão, violência e extermínio. Resgatamos aqui a noção de endógeno em sentido cosmológico, insurgente e relacional, e não biologizante ou identitário, e assim nos distanciamos radicalmente dessas derivações. O que está em jogo não é a celebração de uma essência imutável, mas a reivindicação de um pertencimento negado, uma reinscrição crítica da existência indígena em sua relação endógena com a terra, com o tempo e com o coletivo, fora das lógicas de expropriação, folclorização e apagamento. Trata-se, portanto, de deslocar o termo de sua possível carga essencialista para um campo de resistência epistêmica e ontológica, onde “ser de dentro” não implica pureza, mas sim vinculação, historicidade e luta por reexistência.

[4] Tradução nossa.